Minha experiência de ter o corpo pintado por uma índia Mebêngôkre-Kayapó

Indígenas vieram a Curitiba para conhecer o acervo do Museu Paranaense e compartilhar saberes ancestrais

Cinco dias de viagem. Caminhando pela floresta, passando por dentro do rio, fazendo um trajeto de barco, de caminhonete e outro de avião, um grupo de indígenas da etnia Mebêngôkre-Kayapó atravessou o Brasil a convite do Museu Paranaense (MUPA) para compartilhar habilidades e saberes ancestrais. 

Vindos da aldeia Kubenkrãkenh, no município de Ourilândia do Norte, no Pará, apenas dois dos indígenas falavam português. Para os demais, foi a primeira experiência de viagem a uma cidade grande. Em Curitiba, dentre as atividades dos indígenas Beppre re Kayapó, Kokodjy Kayapó, Mrynho re Kayapó, Bekwynhtokti Kayapó, Mrodjanh Kayapó e Moxare Kayapó, estavam oficinas de pintura corporal, venda de artesanatos, muitas entrevistas e uma visita especial ao acervo do museu para contato com objetos e imagens originários de seu povo: as coleções Vladimir Kozák e João Américo Peret.

O museu segue as diretrizes que convenções internacionais de museus adotam ou vem tentando adotar. A linha principal dessas diretrizes é a possibilidade de que os povos que estão representados dentro do museu por peças ou filmes possam acessar esses objetos enquanto heranças e patrimônios culturais de seus povos. É importante tanto para que saibam que esses objetos existem quanto para que possam participar das decisões em relação a eles.

Para a antropóloga do MUPA, Josiéli Spenassatto, trazer os Mebêngôkre-Kayapó para o museu é uma questão ética. “O museu tem esse acervo gigantesco deles, então é um dever do museu fazer com que eles acessem esses objetos. Chamar esses outros que, historicamente, foram representados aqui dentro sem permissão e sem participação ajuda a fazer um museu mais engajado com a sociedade, mais dialógico, mais interessante, mas respeitando preceitos éticos em relação a como a gente está expondo e realizando atividades.”

Cultura do branco

Beppre re Kayapó, o representante da aldeia Kubenkrãkenh, afirma que ter contato com essa herança é muito importante para a preservação da cultura, especialmente entre os jovens que saem da aldeia para estudar e adotam a cultura do branco. As imagens serão levadas à Aldeia Mãe para serem mostradas a todos.

O acervo

Além dos objetos, o museu tem um acervo fotográfico de cerca de 300 imagens, além de um filme e vários slides, tudo produzido nas décadas de 1950 e 1960. “Eles vão poder olhar para um outro momento”, diz a antropóloga. “Inclusive, tem um pequeno filme de mulheres Kayapó fazendo desenho em uma criança. Eles vão poder visitar esse vídeo e contrastar com as práticas que eles têm hoje. Será que aquela pintura ainda é feita? Será que a técnica que está sendo empregada ali no filme, por aquela mulher, elas também empregam? O que mudou? O que permaneceu?”

Os indígenas trouxeram do Pará artesanatos feitos em miçanga. Foto: Kraw Penas/SECC

Senha número cinco

Tive a oportunidade de participar da oficina “Jenipapo, pintura corporal e grafismos Mebêngôkre-Kayapó” no segundo e último dia. Para garantir uma vaga, cheguei 45 minutos antes da entrega das senhas para a pintura individual. Como no dia anterior, uma fila enorme se formou, com muito mais gente do que havia horários para pintura. 

De acordo com o antropólogo indigenista Daniel Tibério Luz, da Associação Floresta Protegida, que acompanhou os indígenas durante toda a viagem, eles estavam bastante felizes com o sucesso do evento e a receptividade dos curitibanos. “Essa troca de conhecimento, a valorização da cultura, o respeito é diferente do que eles veem lá na região”, conta o antropólogo. “Lá ainda tem muito preconceito, embora eles movimentem também a economia, o capital local, os brancos não reconhecem. Então, é bom estar aqui, ver outro tipo de olhar para o bem, com o respeito que eles merecem.”

A minha vez

Chegou a minha vez. Sentei na cadeira em frente a uma das ilustres convidadas. A pintura corporal é uma atividade realizada por mulheres. Ela logo pegou minha mão, colocou sobre sua coxa e iniciou o processo. Molhava uma das mãos na mistura preta de carvão vegetal com jenipapo e passava na vareta feita da palmeira Inajá. O toque suave e certeiro deixou em meu braço linhas retas, que ela depois ornou com círculos marcados com a ponta do dedo indicador. Ela falava algo enquanto pintava, além da minha compreensão. Em português, trocamos um “bom dia”, um “bonito!” e um “obrigada”, além do sorriso, de linguagem universal.

Fases da vida

Na cultura Mebêngôkre-Kayapó, as pinturas corporais são consideradas roupas que versam sobre as fases da vida: luto, nascimentos e cerimônias. Normalmente, o corpo todo é preenchido de grafismos que representam o momento daquela pessoa na vida e na comunidade: a pintura de uma mulher em luto é diferente daquela de uma gestante. Um homem com muitos filhos é tingido com formas diferentes de um com poucos. 

O grafismo feito em meu braço, isoladamente, não possui significado. Disseram apenas que seria uma pintura festiva. A tinta deve ficar no corpo por pelo menos três horas antes de ser enxaguada. No banho, sai o carvão e fica o pigmento por cerca de 10 dias. Gostaria que durasse mais. Me sinto honrada em carregar na pele a expressão de um povo originário. 

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