Pecado, redenção e poesia no pântano do poder

Este é um romance sobre poder, sobre deslealdade e sobre lutas institucionais

O Plural está convidando leitores a escrever sobre seus romances políticos preferidos. Este é o segundo da série

Logo no início de “Todos os Homens do Rei”, o governador Willie Stark está precisando de informações, digamos assim. Há um juiz, Irwin Stanton, atrapalhando seus planos. “Parece que temos um serviço especialmente feito para você”, ele insinua a Jack Burden, seu assessor de imprensa e braço direito. Burden é muito próximo do juiz Irwin, quase um filho, e não tem motivos para duvidar de sua retidão e justeza de caráter. “Não acho que você vá encontrar qualquer coisa sobre o Irwin”, ele adianta para o chefe. “Sempre existe alguma coisa.” “Talvez não sobre o juiz.” A resposta de Stark encerra a conversa: “O homem é concebido em pecado e nascido na corrupção, e ele passa do fedor da morte para o cheiro fétido da mortalha. Sempre existe alguma coisa.” Descobrir isso é a inglória tarefa de Jack Burden.

Esse diálogo de poucas linhas talvez resuma tudo o que você precisa saber antes de começar a ler o romance político de Robert Penn Warren, vencedor do Prêmio Pulitzer de 1947. Mas pediram um texto, e seria falta de profissionalismo de minha parte enviar apenas um parágrafo. No livro, Willie Stark é um advogado honesto e ingênuo de um grotão norte-americano, que aceita até mesmo galinhas como pagamento por seus serviços ao socorrer os miseráveis explorados da região. Alguém que se fez sozinho, e que ascende na política até se tornar governador, enquanto descobre o que os homens podem ter de pior e mais escuso, e lida com isso à maneira habitual: substitui seu idealismo caipira por um pragmatismo amoral, disposto a quase tudo – chantagear, subornar, ameaçar, aliciar, corromper, pouco importa – para arrancar alguma justiça do poder.

Afinal, “sempre existe alguma coisa”, disse Willie Stark. É uma verdade sobre o juiz Irwin, é uma verdade sobre quaisquer dos personagens de “Todos os Homens do Rei” e – por que não dizer de uma vez? – é uma verdade sobre nós. Tanto que Stark é inspirado em um político real, Huey Long, que governou o estado da Louisiana de 1928 a 1932 pelo Partido Democrata.

“Todos os Homens do Rei” nasceu como uma peça de teatro em versos, que Warren escreveu e reescreveu tantas e tantas vezes, por anos, até virar um romance. Tamanho empenho foi bom para o personagem Jack Burden, que deixou de ter apenas uma aparição relâmpago na dramaturgia para ser alçado à posição de narrador e um dos protagonistas. É do passado em versos que vem o estilo da narrativa, que em alguns momentos fica à beira da prosa poética, um lirismo que contrasta com as ações traiçoeiras dos personagens e com os memoráveis diálogos encharcados de cinismo.

É um romance sobre poder, sobre deslealdade e sobre lutas institucionais. Sobre até onde é possível torcer a moral em nome de “fazer o bem”. É ainda um livro sobre redenção. A redenção de um personagem específico, Jack Burden, quando, num final plácido e comovente, ele finalmente adquire a coragem necessária para romper seu casulo. E quem é que não gosta de uma boa história de redenção?

Como observou Joseph Blotner no prefácio da edição brasileira, não foi à toa que Robert Penn Warren escolheu como epígrafe de seu livro uma frase tirada de “A Divina Comédia”: “O homem não está tão perdido que o amor eterno não possa recuperar, enquanto ainda restar um fio de esperança”.

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