John Wayne, hippies e outras invenções americanas

Novo livro mostra a alma americana segundo Joan Didion

Nos anos 70, durante a minha infância, falava-se dos hippies como se eles habitassem comunidades logo ali, na cidade ao lado, cercados de incenso, paz e amor. Nunca vi um hippie genuíno, até porque cresci em cidades pequenas do interior do Paraná, e mesmo assim eles me fascinavam. Como não querer saber mais sobre pessoas que se propõe a testar um outro estilo de vida, desapegado dos bens materiais e das convenções?

Quando soube que Joan Didion tinha escrito uma longa reportagem sobre os hippies que viviam em São Francisco em 1967, quis muito ler o texto. O que pude fazer agora que a Todavia traduziu e publicou no Brasil, pela primeira vez, “Rastejando até Belém”, o livro que reúne reportagens de Didion publicadas em revistas americanas ao longo dos anos 1960. Comecei a leitura por aquela reportagem que ela fez com os hippies na região de Haight-Ashbury, em São Francisco.

Uma vez li em um perfil que Joan Didion ficou perturbada ao encontrar uma menininha de cinco anos a quem a mãe dava LSD. Talvez para a repórter tenha sido o tiro de misericórdia no “sonho” hippie, que ela já vinha descrevendo como um fenômeno bem menos consistente e saudável do que aquele que eu iria imaginar, alguns anos depois. O que ela encontrou foram pessoas muito jovens, muitas até menores de idade – ela as chama de crianças – que fugiram de casa e da escola e viviam precariamente, sem saber expressar porque agiam assim ou o que pretendiam, e que se distraiam usando drogas. Os hippies chegaram a ser temidos como uma ameaça à forma constituída de vida em sociedade, ou seja, acreditava-se que podiam ter um papel político. Didion vai atrás de qualquer evidência de que alguém, naquelas ruas fumarentas de maconha, tivesse um projeto político, pacífico ou violento. Ela registra o que encontra, que é quase nada. Curiosamente, pelo olhar de alguém que lê a reportagem hoje, Didion não se interessou por outro fenômeno que ocorria nos velhos imóveis ocupados pelos hippies: a violência sexual, especialmente contra meninas que apareciam por ali atraídas pelo estilo de vida e pelas bandas de rock.

No prefácio, Didion afirma que foi a primeira vez que lidou “de forma direta e categórica com as evidências de atomização, a prova de que as coisas desmoronam.” Em uma certa altura da reportagem, ela escreve que “em algum momento entre 1945 e 1967, omitimos dessas crianças as regras do jogo que calhou estarmos jogando.” “Mais do que revoltados contra a sociedade, eles a ignoram.” Joan Didion, a repórter, vai de uma comunidade hippie a outra sempre de forma contida e – desconfio – desanimada. Seus entrevistados não articulam uma única frase esclarecedora. Mas ela não os julga nem demonstra desprezo. É tratada como uma velha, apesar de ter 32 anos, ou como representante da “mídia venenosa”.

“Rastejando até Belém” não é uma reportagem convencional. Para efeito de história do jornalismo, é classificada como New Journalism, um formato que andava no auge nos Estados Unidos naquela época. Aqui no Brasil, nunca emplacou com a mesma força. Mesmo a revista Realidade (1966-1976), que é frequentemente relacionada com o Novo Jornalismo, sempre se ateve à reportagem do tipo “desencavadora de fatos” em que o repórter é uma voz anônima ordenando as informações. A Piauí, que há 15 anos publica textos longos, também segue esta linha. O motivo para este estilo de reportagem de Joan Didion e Gay Talese não ter prosperado no Brasil, eu desconheço. Mas imagino ter a ver com a indigência do mercado editorial brasileiro, sempre se debatendo com a escassez de leitores em um país de nível educacional muito baixo. De qualquer forma, é um tipo de reportagem e de texto muito difícil (e caro!) de se produzir.

Joan Didion escreveu que ficou frustrada com o resultado de sua empreitada pela Haight Street e com a recepção que o texto teve. Concluiu que ninguém entendeu nada. Não sei o que ela pretendia, mas eu entendi que a reportagem foi para ela uma sequência de desencantos e temor pelo futuro. Segundo um perfil de Didion publicado na The New Yorker, os editores do Saturday Evening Post a enviaram para São Francisco exatamente porque previam que ela detestaria os hippies, o que de fato aconteceu.

Os hippies de “Rastejando até Belém” não eram como eu imaginava. Eram jovens demais e desaparelhados demais para refletir sobre o que viviam. Não refletiam, apenas se drogavam – mas ainda acredito que devia haver experiências mais interessantes acontecendo em outros lugares.  Já o texto sobreviveu bem aos mais de 50 anos que separam a reportagem do leitor de hoje graças à escolha de Didion por não construir uma história e, muito menos, uma moral da história. Talvez estivesse confusa, talvez atônita diante daquelas vidas tão diferentes da dela: o fato é que ela se contém, não julga os retratados e isso salva a reportagem. Já a escolha dos casos de duas crianças pequenas, filhas de hippies, para fechar o texto, indica que ela supunha que aquela experiência ia terminar mal.

Em outro texto, a repórter toma um rumo diferente. É “John Wayne: uma canção de amor”. O título é um resumo acabado do que vamos encontrar.  Joan Didion cresceu amando John Wayne, a personificação do homem com H maiúsculo e um coração correto, pronto para o sacrifício (por contraste, entendemos a dificuldade dela com os hippies). Ela escreve sobre o ídolo em um momento em que a força do gigante está ameaçada (ele tem câncer) e faz uma homenagem não só ao ator, mas à masculinidade. O ambiente em que ela o retrata só tem homens, piadas de homens e camaradagem de homens. Aparentemente a repórter não entrevista ninguém e nem mesmo dirige a palavra aqueles senhores tão seguros de si. Podemos imaginá-la à mesa com eles, no estúdio onde gravam mais um western, pequena e silenciosa, consciente de que estava testemunhando um mundo em extinção. No final (do trabalho que ela fazia que coincide com o fim da filmagem), ela se emociona e compartilha conosco um momento íntimo em que presenciou uma terna homenagem ao cinema e ao ator.

O livro “Rastejando até Belém” é dividido em três partes. Na primeira, estão reportagens sobre a vida americana que desenham um país onde se inventou uma nova forma de ser neurótico – jovial, mas ainda assim, neurótico. Na segunda parte, dá uma guinada e em cinco textos faz reflexões sobre como a jornalista vê a vida e, novamente, sobre a mentalidade americana. Dá para dizer que para Joan Didion as duas coisas estão interligadas: ela não consegue ver o mundo a não ser através dos mitos e fraquezas do país onde nasceu. Mesmo sendo uma pessoa muito culta e com referências que vão além da produção cultural de seu país, é a ele que ela volta o tempo todo para refletir sobre o que quer que seja. Pode ser até que seja assim com todo mundo, mas no caso dela essa relação é a primeira característica que se nota.

Como para confirmar o que eu dizia no parágrafo anterior, a terceira e última parte do livro tem textos que fundem as perspectivas das duas partes anteriores. Ela fala de si (a infância) enquanto fala de Sacramento. Fala de uma crise da juventude enquanto descreve Honolulu. Os Estados Unidos são gigantes e oferecem cenários para todas as crises e descobertas que uma mente inquieta e brilhante como a de Joan Didion pode gerar.

Serviço

Rastejando até Belém, de Joan Didion. Tradução de Maria Cecilia Brandi. Todavia. 237 páginas. R$ 65,00.

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