Elas não se importam

"A Visão da Plantas", de Djaimilia Pereira de Almeida, desenha um jardim poético e indiferente para acolher um violento passado de capitão

Esta resenha é parte de um projeto da Esc. Escola de Escrita e do Plural, em que convidamos escritores que tenham passado pela escola para escreverem sobre livros recém-lançados.

A escritora Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em Angola, mas cresceu nos arredores de Lisboa. É reconhecida por carregar em suas narrativas o pensamento acerca das questões de raça, gênero e identidade, presentes de saída em seu primeiro romance de autoficção, intitulado Esse Cabelo, publicado em 2015. A autora de A Visão das Plantas [Todavia], publicado cinco anos depois da estreia e consolida sua trajetória literária não somente pelos prêmios que tem acumulado, mas especialmente pelas histórias contadas de forma sensível, por pontos de vista nem sempre óbvios. A obra ficou em segundo lugar no Prêmio Oceanos, um dos reconhecimentos mais importantes da literatura em língua portuguesa – o que já nos convida a conhecer capitão Celestino, personagem com o qual a autora deparou pela primeira vez no livro Os pescadores [1923], de Raul Brandão. O trecho que a inspirou a escrever a obra é a primeira janela que abrimos.

“(…) tendo começado a vida como pirata a acabou como um santo, cultivando com esmero um quintal de que ainda hoje me não lembro sem inveja”, p.7

Foi pelas mãos de Celestino que a morte se deu. No mar, à cal, no porão de um navio negreiro que partira da costa da África para o Brasil – e há aqui um pano de fundo geográfico (in)visível. A violência do passado agora arrefece em um jardim, que absorve seus malfeitos em cravos, sardinheiras-vermelhas, atilhos e rosinhas cor de chá. É no retorno à casa de sua infância, em Portugal, com o sangue já seco, que o personagem se reconstrói, observado entre frestas verdes.

Um fio condutor delicado vai nos aproximando de Celestino, não sem nos apertar a garganta em um movimento desconfortável que beira o horror. De espinho em espinho, a história alinhava o carrasco ao jardineiro que agora se constrói, na frieza poética da terra. A casa é a única que o espera, tomada pelas plantas em balbúrdia e dominação, ocupando as fissuras por onde a vida se agarra, em silêncio. Embora Celestino não conheça a terra tão bem quanto o mar, ali se abriga das pessoas, sem saudade e sem se sentir assombrado. Não se trata de esconder as atrocidades, nem de ser perdoado por Deus. Trata-se de uma conversa franca com a morte e com o tempo que lhe resta. 

“(…) que a natureza conspira para nos adormecer, que no fim do mundo não há gente, só troncos doentes pelo chão (…)”, p.14

A vizinhança se mantém à distância, ora espia, ora teme, ora esquece. Assim como as crianças que vêm se alimentar em cima do muro e, com o passar do tempo, sentam-se ao redor de Celestino para matar a curiosidade. Seu único interlocutor habitual é o padre, que trava uma batalha espiritual e amigável da qual Celestino se arreda. O interesse se concentra no jardim, pelo qual ele zela incansavelmente. Das memórias, carrega facas, gargantas, anão, elefante e uma menina holandesa com cabelos de fogo. O cenário é coberto pelas ramificações do que foi e do que é, mas não há lugar para culpa. Existe ali, no jardim e em seu entorno, que é como se fosse o próprio jardineiro, uma condição de impassibilidade, apesar da beleza, apesar do perfume. Um mutualismo facultativo que se despedaça ao longo da história.

“(…) construíra com suas mãos um jardim apenas para ter certeza de que o jardim não queria saber dele, como toda vida não quisera saber de ninguém”, p.55

A narrativa enternece em ondas que vão nos embalando como as folhas das árvores mais altas. Das plantas, bebemos quase versos, encantamentos visuais que perduram pelo tempo exato, em um cenário que é trazido à tona como protagonista orgânico ou metafórico. Arrebatados pelo delírio de Celestino, travamos embates intensos com a loucura, com o vazio, com a solidão e seus temores. A autora rege com maestria sinfônica as palavras. Nos conduz em equilíbrio como o faz a própria natureza, onde bem e mal convivem como forças antagônicas complementares. 

O que nos resta, junto a Celestino, não é necessariamente julgamento – esse papel Djaimilia deixa nas mãos do leitor. Ela prefere nos apresentar o mundo em forma bruta, ainda que o faça em linhas suaves como pétalas de roseiral. Encontramos algo de Mefistófeles, personagem de Fausto que, ao ser perguntado “quem tu és?“, nos responde pelo viés da amplitude: “eu sou parte da energia que mal sempre pretende, mas bem sempre cria”. A vida real, como sangue e água propositalmente misturados. A Visão das Plantas reafirma o que é de difícil digestão: que a natureza perdura, apesar de nós. 

“(…) porque debaixo do Sol cabe tudo quanto há e também tudo quanto houve numa justaposição dos nascidos com os finados, do que murchou aqui com o que germinará nalguma parte”, p.69

Não deparamos com uma metamorfose, uma redenção. A história de Celestino é uma leitura profunda que fala de nós mesmos e reflete o julgamento como abstração – nada restrito ao personagem. Esse encontro com o espelho parece ser um conflito proposto pelo livro, onde a verdade prevalente é delineada pelo leitor, ladeada por cultivo dedicado da autora pela flora que nos habita.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima