Já pensou ganhar sua música favorita como presente de aniversário? (Parte 1)

Artistas começam a vender direitos de músicas para grandes grupos, que podem usar esse legado de diversas formas

A música pop em seu sentido mais amplo, nem sempre associada ao que comumente conhecemos como pop (popular), vive e sobrevive de fatos e versões. Às vezes, versões mais interessantes do que os fatos. Megaexposição midiática e o que for necessário para isso. Sucessos planetários e fracassos idem. Escândalos. Notoriedade e permanência, um pouco mais difíceis nesse gênero amplo e diverso. Música e invenção, ainda mais complicadas em um mercado relativamente acomodado ao que já estamos acostumados a ouvir. Mas, nada se compara ao maior movimento no negócio do pop em muito tempo, como a venda do copyright de canções e catálogos para empresas que podem explorar songbooks e legados históricos como bem quiserem, sem a aprovação dos autores. É um mundo novo até para o universo do pop.

A novidade movimentou toda a indústria causando uma reação em cadeia envolvendo artistas e bandas consagradas, grupos e empresas até então discretas que começaram a aparecer em publicações especializadas e na mídia em geral para justificar suas aquisições. Claro, com muitos elogios aos artistas, alguma nostalgia, certo romantismo e visão empresarial na mesma medida, dependendo dos executivos envolvidos no negócio, que viveram a época dos artistas que acabaram de adquirir ou não. Ao mesmo tempo, quase nada foi dito sobre o que será feito dos catálogos, songbooks e copyrights. Até agora, faltam detalhes e a maioria dos artistas envolvidos optou pelo silêncio.

Bob Dylan e James Joyce

No final do ano passado, Bob Dylan, 80, vendeu mais de 600 canções (não se sabe exatamente quantas) para a major Universal, maior gravadora do mundo, por cerca de US$ 300 milhões, ou R$ 1,5 bilhão, talvez o acordo de direitos autorais mais lucrativo da história até aqui. A Universal é uma empresa global que pertence ao grupo de mídia francês Vivendi, com participação minoritária da empresa de tecnologia chinesa Tencent.

O catálogo de um artista como Dylan, dada a sua importância e influência para a arte dos séculos XX e XXI, construídas em 60 anos de carreira e dezenas de álbuns (oficiais) tem alcance e escala difíceis de imaginar. Em 2016, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto da obra, que não inclui seus livros. No mesmo ano, a Universidade de Tulsa, em Oklahoma, no meio-oeste americano, passou a oferecer um curso de graduação em língua inglesa com três aulas sobre Dylan: “Bob Dylan”, “De Woody Guthrie a Bob Dylan: um século de música pop” e “Políticas do pop”, com cerca de 30 novos alunos por ano.

A maioria não conhece Dylan ou suas canções, segundo o diretor do Institute for Bob Dylan Studies da Universidade, professor Sean Latham, também um dos maiores estudiosos do mundo da obra do escritor irlandês James Joyce. Latham considera Joyce o artista mais influente na primeira metade do século XX não só pelo que escreveu. Dylan, segundo o professor, é o artista da segunda metade, pelo mesmo impacto e influência que teve Joyce, porque estão em todas as formas de arte do século passado.

Bob Dylan – Ensaio fotográfico de Daniel Kramer para a capa de HIGHWAY 61 REVISITED, lançado em 1965. O disco que tem Like a Rolling Stone, Ballad of Thin Man e Desolation Row, além da faixa-título.

A discografia de Dylan tem cinco ou meia dúzia de discos que estão entre os melhores de todos os tempos nessa indústria, atestados por tudo que já foi publicado sobre ele desde os anos 60. Sem contar sua discografia em bootlegs (piratas) que Dylan oficializou e vem lançando regularmente há 30 anos em quase duas dezenas de títulos entre álbuns simples, duplos e triplos. Dá para supor que quase tudo que leva o nome de Dylan na autoria da canção (copyright) deve estar incluído no pacote da Universal, que nunca foi a gravadora de Dylan. Primeiro foi a Columbia, selo independente de Nova Iorque, anos depois adquirida por outra major nesse mercado, a Sony Music. 

Rough and Rowdy Ways”, 39º álbum oficial da discografia de Dylan, lançado pela Columbia/Sony no ano passado, apareceu em quase todas as listas dos melhores discos do ano. Publicações mais tradicionais como as das revistas inglesas Mojo e Uncut, colocaram o disco de Dylan em primeiro lugar. A faixa e o clipe de “Murder Most Foul” foram um dos conteúdos mais vistos, ouvidos, baixados e comentados nas plataformas de streaming e em redes sociais. Fato inédito em se tratando de Dylan, que nunca foi um grande vendedor de discos e menos ainda um entusiasta das redes sociais para promover seu trabalho.

Dylan sempre foi cuidadoso e seletivo para liberar suas músicas, o copyright e o fonograma. “Blowin’ in the wind” (do disco The Freewheelin’ Bob Dylan, 1963) já foi autorizada duas vezes por Dylan para comerciais de TV. Uma para a cooperativa inglesa The Co-operative, em 2009, outra para a Budweiser, em 2019, durante o Super Bowl, o intervalo comercial mais caro do mundo, com uma mensagem voltada para a sustentabilidade e energias renováveis como a energia eólica para a fabricação de cerveja: “… as respostas estão soprando com o vento…”, um de seus refrões mais famosos. No mesmo ano, Dylan liberou “The man in me” (do disco New Morning, 1970) para outra cervejaria, a Stella Artois. “Someday baby”, de um álbum lançado já nesse século (Modern Times, 2007), foi usada pela Apple para campanhas do iPod e ITunes.

Neil Young e David Crosby

Ato contínuo ao de Dylan, o cantor-compositor canadense Neil Young, 75, vendeu metade (não se sabe qual) da participação de suas músicas para a empresa de investimentos britânica Hipgnosis Songs Fund Limited no início desse ano. O acordo custou US$ 150 milhões, cerca de R$ 800 milhões. São 1.080 canções escritas por Young desde que começou com o Buffalo Springfield, banda californiana que ajudou a definir o country-rock e o folk-rock.  Estão no acordo também suas composições e contribuições esporádicas no supergrupo Crosby, Stills, Nash & Young. É quase o dobro do catálogo de Dylan pela metade do preço e metade na participação da compradora.

Neil Young – Foto: Divulgação

Prolífico e combativo como Dylan, inclusive contra a indústria fonográfica, Young tem cerca de 40 trabalhos-solo e continua produzindo. Lançou no ano passado “Homegrown”, gravado originalmente em 1974. Assim como Dylan, Neil Young também está tornando oficiais seus bootlegs na série Archives, com edições fartas e luxuosas em diversos formatos para a alegria dos fãs, mas nem sempre acessíveis pelo preço das mídias físicas. Provavelmente, estamos falando de fãs mais velhos, que gostariam de ter acesso ao acervo por meio do vinil ou do CD, ambos disponíveis e caros, mas não apenas. As novas gerações que estão valorizando e ouvindo vinil terão que desembolsar até R$ 200,00 ou mais por um disco de Young em 180 gramas. Nos sebos, físicos ou virtuais, dá para achar por menos os velhos bolachões, até pela metade do preço, desde que você encontre os discos, o que é bem difícil.

Young sempre foi contra o uso de suas músicas, principalmente para a publicidade. Criticou o próprio Dylan e David Bowie por liberarem suas canções para comerciais de TV. No vídeo que acompanha a canção “This Note’s for You”, de 1988, Young chega a debochar de Michael Jackson, Whitney Houston e Eric Clapton, que eram a favor da prática e estavam vendendo o direito de uso de suas músicas para comerciais de TV. O que teria mudado? Pressões do mercado, necessidade, sobrevivência, fim do ideal anti-establishment dos anos 60 onde toda essa geração foi formada?

Segundo a Rolling Stone norte-americana, em nota enviada à revista, o fundador da Hipgnosis, Merck Mercuriadis, disse que não vai usar as músicas do artista para “vender fast food”, em alusão a uma declaração do próprio Young de 1973, quando recusou a oferta de uma empresa de hamburguer para usar “Heart of Gold” (do álbum “Harvest”, 1972, o disco mais bem sucedido de Young) em seu comercial. Mercuriadis disse que comprou seu primeiro álbum de Young quando tinha sete anos e considera o artista um ídolo. “Eu construí a Hipgnosis para ser uma empresa da qual Neil gostaria de fazer parte“, disse. “Temos integridade, ética e paixão comuns nascidos da crença na música e nessas canções importantes.” Antes de criar a Hipgnosis, Mercuriadis já era conhecido na indústria por ter administrado carreiras de Elton John, Guns ‘N’ Roses, Beyoncé e Iron Maiden, entre outros.

David Crosby, cantor-compositor norte-americano, 80, seguiu a direção de Young e Dylan e vendeu seu catálogo musical para a empresa Iconic Artists Group do executivo Irving Azoff, outro veterano na indústria musical. O valor do negócio não foi revelado. Ainda que em carreira-solo tenha bem menos discos que Neil Young, Crosby incluiu no negócio seus álbuns autorais, canções com os Byrds, Crosby, Stills & Nash, antes da entrada de Young, seu próprio trabalho com o CSN&Y, além dos discos com o amigo e parceiro Graham Nash na dupla Crosby&Nash. Não é pouca coisa em se tratando de um dos autores e músicos mais originais surgidos no cenário da contracultura dos 60 na Califórnia.

David Crosby – Foto: Divulgação

Um dos poucos artistas a falar sobre as negociações que envolveram a compra de direitos autorais, David Crosby foi sincero, como sempre, para a agência France Presse: “a principal razão é simplesmente que estamos todos em uma aposentadoria forçada e não há nada que possamos fazer a respeito… Dada a incapacidade atual de trabalhar ao vivo, este negócio foi uma bênção para mim e para a minha família. Acredito que essas pessoas são as melhores para fazer o negócio… Se pudéssemos ser pagos pelos discos e tocar ao vivo, não estaríamos fazendo isso, nenhum de nós”.

É de Crosby a canção-título do primeiro álbum do CSN&Y, “Déjà Vu”, 1970, marco insuperável na breve discografia do grupo e outro dos melhores discos que essa indústria já produziu. “Guinnevere“, a canção mais bela e intrigante do disco “Crosby, Stills & Nash”, de 69, já mostrava Crosby em direções musicais mais ousadas que seus parceiros na época. Influenciado por John Coltrane, pela música modal e circular de Miles Davis, escalas orientais, afinações abertas e acordes indecifráveis, além de vocais perfeitos em três partes com Stills e Nash. “Guinnevere” poderia ser a canção que pediria de presente de aniversário, mas não é. “Heart Of Mine” de Dylan ou “Midnight On The Bay” de Young, também, mas não são.

Continua…

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