Isto é um negro?

Peça tem quatro atores nus em cena para falar sobre a vida de quem tem pele negra

“Esse espetáculo não tem um tema, ele é sobre existência”, declara Mirella Façanha, atriz e dramaturga da peça Isto é um negro?,  que integrou a Mostra do Festival de Teatro de Curitiba em 2019. O Teatro Zé Maria recebeu, nos dias 30 e 31 de março, as cadeiras brancas, os corpos nus e os questionamentos dos atores Ivy Souza, Mirella Façanha, Lucas Wickhaus e Raoni Garcia.

No palco: a nudez, os questionamentos e as experiências pessoais dos atores / Foto: Rodrigo de Oliveira

O ponto de interrogação preenche não apenas o título, mas a obra como um todo. Mais do que trazer certezas ou resoluções, por meio do estudo da negritude e de suas experiências pessoas, o quarteto quer mesmo é dialogar: “A lógica é que a gente consiga elaborar junto alguma coisa, imaginar uma possibilidade de futuro juntos. […] Perguntar é também se questionar, se mobilizar”, ressalta Mirella.

Isto é um negro? surgiu a partir de um estudo das narrativas e dos pensadores da negritude, e de como seria levar essa teoria à cena. Nomes como o de Achile Mbembe, Angela Davis, Djamila Ribeiro e Sueli Carneiro estão entre os  estudos do grupo, que vê uma espécie de cura na transposição dessa teorização para os palcos.

“O espetáculo foi construído a partir de uma urgência e uma necessidade de restituição de fala, não parte de uma fórmula ou uma busca por uma estética ou uma linguagem. A linguagem e a estética surgem a partir da necessidade de dizer e de trocar”, explica a atriz e dramaturga. Com mais de 50 apresentações na bagagem, a peça é também uma ferramenta para apresentar as múltiplas facetas do movimento e da identidade negra: “Se imagina o que é um negro. É isso, quando as pessoas dizer, ‘ah, movimento negro’, como se fosse uma casa, como se ele fosse um objeto, como se a gente fosse igual também”, afirma Mirella.

O propósito por trás de toda a experiência é estabelecer um diálogo direto com a plateia sobre racismo e relações de identidade de raça. Para o grupo, é preciso que o espectador esteja disposta a se implicar, assim como eles, no assunto. “Tem uma parcela que sofre em relação ao racismo e radicalização, mas não é só a gente que tem que dar conta. É estrutural, é estruturante […]. Todo mundo precisa discutir sobre isso”, pondera Mirella. O resultado é uma obra que não se preocupa com a execução em si, com performances: “Não é sobre executar. […]. A gente vive isso todo dia, em cena eu digo, não é uma representação sobre, não tem uma ‘construção Outra'”, relata.

Da esquerda para a direita: Ivy Souza, Mirella Façanha, Lucas Wickhaus e Raoni Garcia / Foto: Giorgia Prates

É dessa vivência no palco e da relação que se estabelece entre plateia e protagonistas que o espetáculo se molda: “Às vezes fica muito mais violento, às vezes fica muito mais ‘leve’. […] O espetáculo é todo suportado em uma relação de humor. E isso, pra gente, é muito importante para conseguir construir o diálogo”, salienta Mirella. Claro, não há pretensão de que o espetáculo chegue ou faça sentido para todos: “É um convite para o diálogo, pra se implicar e a omissão disso também é uma escolha, uma posição política”, esclarece Ivy.

Mesmo com as duas sessões com ingressos esgotados, no entanto, o quarteto avalia que o público curitibano foi um dos mais difíceis de dialogar até o momento: “Tem um lugar de uma soberba que é ‘esse assunto não é meu, não tenho nada a ver com isso, eu não preciso disso’.  Foi a primeira vez que senti que pessoas se retiraram do diálogo”, declarou Mirella.

Na visão de Lucas, há um contexto na cidade que não pode ser ignorado – da colonização na região aos números da última eleição: “Intuí que ia ser complexo esse diálogo, porque a gente se expõem bastante, e tenta responsabilizar essa plateia”, acrescentou. Apesar de a apresentação para um público majoritariamente branco ser algo mais complexo, o ator reconhece a validade da discussão. “A gente tem que estar aqui, aqui esse debate precisa ser ainda mais forte”, ressalta.

O quarteto continua a viagem pelo país, e deixa Curitiba – e o Festival – com um questionamento saudável sobre o interesse de seu trabalho dentro da curadoria: “Até onde se entendeu que é importante falar sobre isso?”, pergunta Mirella ao ressaltar que nem sempre é só sobre representatividade.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima