Humor solar

Como a cartunista Pryscila Vieira conquistou um mundo chefiado por homens e hoje estuda astrologia para traduzir as estrelas em suas tirinhas

Quando chego ao Cine Passeio, é fácil reconhecer Pryscila Vieira – a cartunista curitibana de um metro e oitenta de altura e cabelos longos escuros tem, ao vivo, o mesmo tom de voz animado do áudio que me enviou dias antes, pelo WhatsApp. Caretas, poses, brincadeiras: a equipe de gravação, com quem Pryscila realiza o trabalho do momento, não para de rir. A própria cartunista só parece sossegar um pouco quando observa, por alguns segundos, um dos quadros na parede do café. Em preto e branco, a imagem retrata Chaplin como uma marionete do personagem de Marlon Brando em “O poderoso chefão”.

Aos 41 anos, mas com a energia de 20, Pryscila revela o segredo da juventude: filtro solar (mesmo quando está dentro de casa) e má iluminação. A lógica funciona assim: quanto mais difícil for para os outros enxergarem você, mais jovem você vai parecer. O bom humor é o que ela define como leveza: “É como se [o humor] fosse um idioma, em que você traduz as coisas sérias de uma maneira que, por mais difícil que seja, as pessoas vão receber com leveza”, explica.

Mais do que uma forma de expressão, para Pryscila, dominar essa linguagem se tornou uma missão de vida. Uma missão que começou cedo. Já na escola, quando tinha entre sete e oito anos, vieram as primeiras caricaturas. Os desenhos tinham uma função bem clara: proteger as crianças que sofriam bullying de seus agressores. “Quem xingava, colocava apelido, eu ia lá e via o pior dessa pessoa: desenhava e mostrava para o colégio inteiro”, conta. Ela reconhece que essa talvez não tenha sido a melhor estratégia, mas funcionou. Hoje, protegidos e ex-agressores mantêm contato com a cartunista, escrevem para ela e acompanham seu trabalho. Alguns chegaram a guardar os desenhos.

“[Essa foto] é muito ‘como uma deusa vc me mantém’. KKKKK”, comenta ao enviar o arquivo. Foto: Theo Marques

Esse humor solar, mais escrachado e de expressões mais amplas, é marca das tirinhas e da vida de Pryscila. “O humor bom está no meio do caminho: é o tapa com luva de pelica, sem jamais chutar um cachorro morto”, diz. Hoje, ela se divide entre frilas, fazer bolhas de sabão para entreter os gatos e dormir poucas horas por dia – o que define como “insônia criativa”.

Se a linguagem do humor veio cedo, o amor pelo desenho veio ainda antes. Há obras – pinturas a óleo – que datam de 1983. Na época, a caçula de três irmãos já fazia aulas de pintura, um pedido que fez aos pais os quatro anos de idade. No início, o exercício era copiar as gravuras dos livros que tinha em casa. Havia duas pilhas: uma dos que ainda precisava desenhar e outra dos que já tinham sido copiados. “Era um prazer imenso desenhar, não sei nem explicar. Uma realização. O cheiro da caneta era bom, o cheiro do papel era bom”, lembra.

Outra memória de infância são desenhos do pai, reproduções – por hobby – da HQ “Mundo Bizarro”, da DC Comics, um universo alternativo cujo personagem mais conhecido é o Super-Homem Bizarro. Ela tentava copiar os desenhos, que define, em tom de brincadeira, como “uma coisa meio Picasso que deu ruim”. Apesar das tentativas frustradas de ensinar a filha a desenhar cavalos em seu traço peculiar, o pai de Pryscila parecia ter uma compreensão mais próxima da filha. “Acho que ele via que eu tinha umas conexões diferentes”, comenta. Apesar do sucesso, ainda não está claro para a família da cartunista o que é que ela faz da vida, exatamente.

O cartum, como trabalho, só chegou na época da faculdade. Por volta de 1996, Pryscila passou a cursar Desenho Industrial. O critério de escolha para a graduação foi – claro – a vontade de desenhar. Uma decisão não muito bem-vista na família. “Eu nem sabia que era cartunista”, diz. Foi trabalhando com César Marchesini, a quem chama de mentor, que começou a entender a profissão. “Quando eu tinha que preencher crediário (risos), comecei a assinar ‘cartunista’. Pensei, ‘acho que é isso que eu sou’”, conta.

Ainda durante a graduação, Pryscila participou do concurso universitário do Salão Internacional de Humor de Piracicaba – o segundo maior evento do mundo no segmento. Ganhou, e assim o fez por anos seguidos, usando o dinheiro dos prêmios para pagar a faculdade. A partir daí, não parou mais.

Mergulhada no universo dos cartuns, Pryscila passou a conhecer outros artistas. Entre os 17 e os 18 anos, já era amiga de Ademir Paixão – por anos titular da “Gazeta do Povo”. Foi a amizade com o chargista que a levou a trabalhar no jornal. Durante cinco anos, Pryscila aprendeu a disciplina da produção diária de conteúdo – uma lição que carrega até hoje. “Meu crachá era ‘Pryscila, ilustrador’, não colocaram ilustradora, porque não tinha”, lembra.

Aos 19, já era conhecida de nomes como Ziraldo e outros tantos, quando foi convidada para coordenar a Bienal de Humor do Mercosul, em 1997. “Uma irresponsável!”, diz ao lembrar que topou o convite sem saber muito bem o que estava fazendo. “Mas o mundo não anda se você não for irresponsável.”

Apesar da suposta “irresponsabilidade” da juventude, o senso de coletividade e de justiça da infância perduraram. Em 1998, quando o então estudante de jornalismo Alberto Benett estava sendo processado por um prefeito de Ponta Grossa, Pryscila veio ao resgate. Insatisfeito com as obras expostas no SESC, o político processou Benett e pediu 40 salários mínimos. “Ela ficou sabendo do absurdo e moveu mundos e fundos para me ajudar. Falou com vários cartunistas do Brasil e eles redigiram uma carta em apoio a mim, que foi publicada no jornal da cidade”, diz o chargista. Os dois sequer se conheciam.

Criadora e criatura: Pryscila e personagem Amely. Foto: Leo Feltran

É esse jeito meio “pé na porta”, meio “depois eu chamo os advogados”, que fez o nome de Priscila tomar as proporções atuais. A determinação em aprender com os grandes artistas, e ser profissional, fez com que ela figurasse entre os dez nomes indicados por Ziraldo a um diretor da Globo, para fazer as vinhetas da emissora. Também foi essa coragem que fez as tirinhas de sua personagem Amely serem publicadas pela “Folha de S. Paulo”. “Foi por causa de um e-mail que eu mandei pro editor. Falei ‘olha, meu nome é Pryscila, eu quero publicar tirinhas na ‘Folha de S. Paulo’. Mas mandei na pessoa certa”, diz.

Machismo e feminismo
O caminho, no entanto, não foi fácil. Basta imaginar como era o mundo dos cartunistas no Brasil dos anos 1980 para uma jovem de 19 anos. “Todos homens e eu, ali”, diz. Houve comentários de todos os tipos. Nesse sentido, foi preciso um tanto de inocência, e outro tanto de jogo de cintura. “Eu relevei muita coisa, falando em machismo. Não existia empoderamento, não existia mulher ter voz, não existia mulher cartunista”, pontua.

No fim, Pryscila prevaleceu. “Se eu fosse levar ao pé da letra tudo o que me falaram ao longo de 26 anos, considerando que aquilo era machismo, eu não teria avançado na carreira”, diz. Hoje, entende que resistiu e que conquistou espaço. Alguns colegas, com o tempo, chegaram a pedir desculpas por comentários ou atitudes machistas.

Ela própria reconhece que o feminismo fez a diferença no seu humor, mas estabelece um limite para a militância no trabalho. “Enquanto artista, entendo que não preciso levantar uma bandeira o tempo todo”, ressalta.

Em sua obra, a grande porta-voz da questão das mulheres é a personagem Amely: uma boneca inflável que vem com dois defeitos de fábrica, falar e pensar. A personagem foi criada em 2005, após o término com um ex-namorado machista. “Foi uma época em que eu me sentia um objeto”, diz a cartunista. Amely já rodou o mundo e rendeu um livro: “Amely – Uma mulher de verdade”, pela Contenido Publish.

Conhecida pelo humor afiado, Pryscila conseguiu, em uma única personagem, unir o humor crítico à sua visão de mundo. “Claro que a Amely é extremamente pessoal, mas por isso mesmo é universal e atinge em cheio a alma do leitor – seja ele homem ou mulher, brasileiro ou não. Todo cartunista sonha em criar um personagem que seja sublime, que seja universal e único. A Pryscila conseguiu”, diz Benett.

Livro e estatuetas de Amely podem ser adquiridos entrando em contato com a cartunista, pelo site <amelyreal.com>. Foto: Pryscila Vieira

Escorpiana com ascendente em escorpião e lua em leão, Pryscila se entende como uma pessoa de intensidades. A artista desbravadora que busca flores em meio à lama de seu próprio pântano pessoal.

O interesse pelo ocultismo é uma herança do pai, membro da Ordem Rosa Cruz. Atualmente, Pryscila se dedica ao estudo de astrologia, e da teosofia – doutrina criada por Helena Blavatsky com elementos de filosofia, ciência e religião.

A ideia da cartunista é traduzir as estrelas em suas tirinhas. Dessa vez, ela quer publicar no “New York Times”. Ainda não conseguiu o e-mail do editor, mas não restam dúvidas de que, logo mais, os traços de Pryscila estarão circulando por Manhattan.

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