Compositor Harry Crowl fará parte de uma cantata mundial sobre a pandemia

Mineiro radicado em Curitiba fala sobre a participação em trabalho que envolve nomes da música clássica do mundo inteiro

Harry Crowl é um mineiro de família americana, curitibano por opção, e viaja com sua música pela Europa há muito tempo. Se há um músico cosmopolita na cidade, provavelmente é ele. Faz sentido o convite que ele recebeu, para participar de uma obra colaborativa mundial.

Compositor reconhecido, Harry foi escolhido para representar a América do Sul em uma Cantata que falará sobre a pandemia do coronavírus. Gente de seis cantos do planeta foi chamada para escrever sobre o vírus e o caos que ele provocou.

Nessa entrevista, Harry fala um pouco sobre sua participação, sobre a polêmica frase do presidente Jair Bolsonaro que incluiu em sua composição e sobre a música erudita no século 21.

Como veio o convite para a cantata? Houve uma seleção?

Em abril, recebi um e-mail do regente alemão Philipp Amelung, que eu não conhecia, me convidando para participar do projeto “Shadow and Hope”. Ele me explicou que a ideia era fazer uma cantata para coro e quarteto de cordas nos moldes do “Réquiem da Reconciliação”, que foi realizado na Alemanha, quando celebraram os 50 anos do final da Segunda Guerra Mundial, convidando compositores dos países envolvidos no conflito.

Ele queria uma cantata com diferentes seções compostas por músicos que representassem os “seis” continentes, pois América do Norte e América do Sul teriam cada um o seu representante. Foi um e-mail tão inesperado que quase não abri e, por pouco, não apaguei. Recentemente, em matéria para o jornal alemão “Süddeutsche Zeitung”, ele disse que chegou a meu nome pelo Google.

Tua parte vai ser um quarteto de cordas com vozes, pelo que vi. Por que esse formato?

Quando comecei a pensar na obra, me veio a ideia de escrever o meu Quarteto de Cordas n. 3, com coro, que é algo inexistente. Arnold Schönberg escreveu o seu Quarteto n. 2, com soprano solo. Muitos seguiram o seu modelo depois, como o argentino Alberto Ginastera. Mas com coro, que eu saiba, nenhum compositor o fez até agora. Consultei o Philipp sobre essa possibilidade e ele aprovou imediatamente, pois os outros estão escrevendo obras corais com acompanhamento de quarteto, e como a minha participação se dará no meio da cantata, pois a ideia é apresentar a obra coletiva na mesma sequência em que o vírus se espalhou pelo mundo (Ásia, Europa, América do Norte, América do Sul, África e Oceania), o quarteto funcionará como um interlúdio instrumental com intervenções corais.  Queria expressar afetos relativos à pandemia no Brasil de forma mais abstrata através de música puramente instrumental.

É verdade que tem frases do Bolsonaro no meio? Pode adiantar quais são?

Sim. Utilizei uma frase que vi numa manchete de jornal. As frases que aparecem vieram todas da imprensa na internet. O quarteto termina com o poema “Céu”, de Laura da Fonseca e Silva Brandão (1891-1942).

A frase do Bolsonaro é: “Que o isolamento social acabe, a vida volte ao normal e que morram quantos tiverem de morrer”.

Como vai funcionar a integração dessas peças todas? Tem alguma combinação de elementos em comum, alguma tonalidade, algo que dê unidade?

Todas as obras devem se basear em um motivo musical de seis notas, enviado pelo Philipp Amelung, representando a palavra corona em uma transcrição livre através da nomenclatura musical alemã. Esse motivo aparece em todas as obras, mesmo que estas sejam muito contrastantes em termos de estilo. As línguas originais dos compositores serão mantidas nas partes vocais e serão chinês mandarim, alemão, inglês (EUA), português, francês (Gabão, África) e inglês (Austrália).

Você tem se dedicado a fazer música sobre temas contemporâneos. Conta sobre o caso da Marielle.

Em 2018, eu participei do Festival Artes Vertentes, em Tiradentes (MG), como compositor residente, meses após o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes. As manifestações artísticas em protesto que apareciam a respeito eram muitas, culminando de alguma maneira, a indignação generalizada com a brutalidade do evento, inaceitável em uma democracia. Durante o festival, conheci o duo formado pela violinista portuguesa Sofia Leandro e o percussionista mineiro Bruno Santos, que apresentaram algumas obras na Capela de São João Evangelista, inclusive uma em homenagem ao compositor e teórico teuto-brasileiro, Hans Joachim Koellreutter (1915-2005). Fiquei muito entusiasmado com a possibilidade de escrever uma obra para violino e percussão especialmente para eles, e que pudesse explorar a técnica violinística e a infinita riqueza de sons propiciada pelo universo multifacetado da percussão. Pensei naquele mundo do Período Colonial de Minas, de Tiradentes, que me é muito familiar, e na religiosidade católica e sincrética que se estende até os nossos dias, principalmente entre os mais desamparados nas favelas e regiões mais remotas do país, que de alguma maneira é herdeira dessas épocas passadas. Com isso, me ocorreu escrever o Concerto n. 4, sobre o nome de Marielle Franco, em forma de via-crúcis, para violino e percussão. O motivo musical é formado pelas letras do nome completo da Marielle, Marielle Francisco da Silva, e a ideia da via-crúcis são as 14 estações que até hoje são representadas em celebrações de semanas santas em várias cidades do Brasil, e no mundo católico também. Cada estação é representada por uma formação distinta da percussão. A obra envolve um arsenal de instrumentos que são executados por um único músico. Enquanto a violinista permanece no centro, o percussionista vai se deslocando em volta dos 14 agrupamentos dispostos em semi-círculo e explorando a diversidade sonora. O concerto, na sua versão integral, estreou na Universidade Federal de São João del Rei, em Minas Gerais, no ano passado, e foi apresentado pelo duo, ambos docentes do departamento de música daquela instituição. Era para eles terem tocado o concerto em Curitiba, no Teatro da Reitoria da UFPR, em março passado, mas com a pandemia, o concerto foi suspenso. Esperamos poder reprogramá-lo para o início de 2021.

A música erudita no século 20 se afastou um pouco do grande público. Essa abordagem programática, sobre temas fortes, pode ser um fator de reaproximação?

Já estamos bem avançados dentro do século 21, que tem se mostrado uma época conservadora e revisionista, em contraste com o século passado, e é, ao mesmo tempo, a época do surgimento e expansão das tecnologias digitais. Portanto, essa ideia de grande público, para mim, ficou muito esvaziada. De qualquer maneira, todos os grandes eventos de música contemporânea em Curitiba, nos últimos 15 anos – como, por exemplo, as quatro “Bienais Música Hoje”, organizadas pelo Ensemble EntreCompositores, PROEC/UFPR, e EMBAP –, tiveram público máximo em quase todos os concertos que contemplaram a maior diversidade possível de estilos e linguagens ocupando todos os espaços possíveis, culminando inclusive com matéria de página inteira, no jornal “O Estado de São Paulo”, em 2013. Hoje em dia a difusão não somente da música contemporânea tem um alcance muito maior através das plataformas digitais do que por concertos ao vivo. Além disso, as linguagens das músicas pop, da música para o cinema e o teatro, além daquelas para a publicidade têm interseções cada vez mais frequentes com a música erudita atual. Quanto à abordagem programática, esta não é uma novidade. Desde o Renascimento, compositores buscam formas de representar elementos não musicais dentro da música. Em algumas épocas mais do que em outras, como no Barroco, no Romantismo e em muitos momentos da música do século 20. No meu caso, penso que, como um compositor contemporâneo, tenho que expressar aquilo que me cerca, tanto o que me incomoda quanto o que me agrada. Tenho também escrito música sobre plantas, paisagens, sensações e até mesmo sobre cachaça…

Como você vê a gestão do governo brasileiro na pandemia? Isso entra na peça? O que os colegas de composição têm falado de tudo isso?

A pior possível. Na verdade, vejo uma total falta de gestão. O governo parece só querer se eximir da responsabilidade. Usei no quarteto algumas frases que expressam  a minha percepção, tais como: “Não temos ministro da saúde”, “Não temos presidente”, entre outras. Os colegas compositores estão, em muitos casos, preocupados com a própria sobrevivência, e têm procurado se adaptar aos novos tempos ao usar as plataformas digitais para difundir os seus trabalhos e expressar a sua indignação. Há também um movimento forte no sentido de se organizarem para tentar dialogar com os governos nas várias esferas, no sentido de promover mais oportunidades profissionais. Isso está sendo feito através da participação em um fórum nacional amplo de discussão sobre ópera, festivais de música erudita, orquestras e composição.

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