Guilherme Gontijo Flores, maior poeta de sua geração, lança livro fundamental

Versos de “Potlatch” mostram que poesia pode ser diversão, pode ser leve, e nisso pode ser também perfeita

Este texto é e não é uma resenha do livro de poemas “Potlatch”, lançado pela editora Todavia.

É, porque só existe para falar do livro, e acima de tudo para te dizer que você deve ler esse livro. Tipo já.

E não é, porque de “resenha” ele tem muito pouco. A começar por precisar começar por uns avisos.

Primeiro deixa eu te dizer com todas as letras. Eu conheço o Guilherme. Eu era chefe de departamento na UFPR quando ele chegou. Assinei eu mesmo o processo da contratação dele. De lá para cá, ouso dizer que ele virou um amigo. Em muita coisa, um quase irmão. Mano, digamos. Brother.

E eu tenho também que te dizer que considero que acompanhar assim de perto a carreira e a produção do Guilherme nesses últimos 14 anos é uma coisa que me dá uma felicidade meio difícil de descrever, até. É ver crescer um nome, um renome, uma presença definitiva no nosso mundo literário.

Segundo, deixa eu te dizer que eu conheci os poemas de “Potlatch” em vários estados de elaboração, antes de o livro existir como tal. Via de regra, colados em mensagens de WhatsApp. E também que eu li o livro, ainda em PDF, assim que foi enviado à editora.

Quando você ler também este “Potlatch”, não vai estranhar a ideia de que o Guilherme tem uma relação muito “coletiva” com a poesia, e preza, de verdade, a opinião dos conhecidos durante a elaboração dos textos.

Sorte minha.

Terceiro, agora que estamos com as cartas na mesa, deixa eu te falar do livro.

*

Um velho de dar dó

aqui         você me vê.

O Guilherme tem 37 anos. Completa 38 daqui a pouco: a idade de Leopold Bloom no “Ulysses”, a idade com que Michel de Montaigne se encerrou na sua torre e decidiu olhar para dentro.

Mas, como o próprio Montaigne, aliás, ele carrega como parte inextricável da sua consciência, como frequência do ruído rosa que rola ao fundo de tudo que pensa, todo um passado de poetas, de cantores, prosadores, pensadores, xamãs e aedos, da Grécia e da Roma antigas (ele é professor de letras clássicas), mas também dos mundos árabe, persa, egípcio, chinês, japonês, indiano e de povos originários das Américas, da África, da Oceania… de onde vierem.

Culturas orais e escritas. De Homero aos Arctic Monkeys e Walter Franco.

E ele faz uso desse repertório de uma maneira direta, concreta, mas nada necessariamente obscura. Ele se serve dessas referências não como quem pincela erudição e elegância sobre o texto; sempre me parece que ele cita e incorpora outras vozes como quem nem tem escolha, como quem simplesmente aceita que sua dicção lhe vem de todos os irmãos, das irmãs todas que um dia disseram, falaram, fundaram mundos com palavras.

Se você não perceber essas referências todas (e eu tenho certeza que deixei escapar montões), isso não é um empecilho. Você não está ali descascando um segredo, buscando fontes, mas ouvindo uma voz completamente nova, original, íntegra e pessoal, que por acaso (será?) calha de não fazer questão de esconder suas filiações.

O “eu” que se pronuncia nos poemas de “Potlatch” se forma dessa maneira (como ponta do iceberg de séculos de literatura) e também enuncia essa constatação de diversas maneiras. Ele é múltiplo e aborda a multiplicidade. Ele é trezentos e cinquenta, é um bronco, um cosmos, e vê também o mundo nesses termos.

O livro é de fato sobre o mundo todo. Presente, passado (e futuro?). Sobre a humanidade. Sobre a natureza. Sobre o tempo. Sobre sexo, morte, violência, nascimento e (nem que seja apenas pelo que resta de beleza) também sobre esperança.

O livro é sobre o Brasil estrebuchando sob a bota deste homem que ainda está sentado em Brasília. O livro é sobre o caos que os homens de ontem e de hoje criaram para o planeta. É sobre política, e ecologia. Mas acima de tudo é sobre pessoas, sobre bichos, sobre rios e o vento, sobre vida.

Quando, gerações adiante, topar com este livro alguém que nem sequer precise recordar o nome do atual presidente (esquecido, apagado, obliterado da memória), essa pessoa não vai deixar de entender seu impacto, não vai perder nada por não ter acesso a essa informação. O dom deste “Potlatch” é bem maior do que o presente, e não depende do que seja tópico, alusivo e contemporâneo. Seu mundo meio que não é deste mundo.

Ele quase-cita Fernando Pessoa e Rimbaud para falar da vítima de alguma qualquer das chacinas urbanas brasileiras. Mas o poema (Matina”) não precisa de nada disso para dizer o que tem a dizer. E principalmente para fazer o que tem que fazer. Ele mixa e remixa poéticas de tudo quanto é canto para produzir uma coisa tão fundamentalmente humana quanto o mundo que abarca; tão essencialmente brasileira quanto o português que fala (uma língua da mais clara oralidade e da mais radical inventividade, com raízes indígenas, negras e latinas). E que linguagem, minha gente…

Porque uma das marcas, certamente a que mais me toca, da voz poética que o Guilherme vem refinando, é um domínio absurdo da construção do verso. Trata-se, sempre, de uma poesia sonoramente inteligente, sofisticada, surpreendente, desviante e exuberantemente linda.

E linda também porque nada previsível, porque nada “dura”.

O som dos versos do livro vem tanto das cadências da poesia oral e escrita da antiguidade, quanto do patrimônio (“clássico” e moderno) português e brasileiro e de recursos mais explorados hoje pelo hip-hop, por exemplo. A quase-rima, a rima enviesada, a rima interna inesperada, o verso que subverte a expectativa da rima colocando a palavra “certa” no lugar errado (“A meta está fadada sempre / ao entreato desta lida / a saída de um beco sem cadela”), tudo gerando poemas que são uma alegria de se ler em voz alta, e que se servem desse engenho, dessa competência sonora, para sublinhar aquele dado tão fundamental da melhor poesia, que é a capacidade de vestir ideias por vezes complexas e sempre impactantes com sons meio encantatórios que te fazem engolir a pílula antes até de saber para o que ela pode servir.

E aí é que ela começa a fazer efeito: é só deixar agir.

E isso vale para versos soltos (“atento a tudo que de vivo / se dê pétala no sagrado”), para poemas isolados, para cada uma das “partes” em que se articula cuidadosamente o livro, e para “Potlatch” como um todo. Pois não se trata de uma coleção de poemas, mas de uma declaração muito delicadamente pensada, estruturada e montada para se transformar num juízo sobre o hoje e seu passado, sobre o futuro e seu amanhã.

Mulher e filhos, cães, folhas, lama, aves, vida e morte. Vida.

Não é pouca coisa.

Ele não está mirando baixo.

Essa é outra das características da poesia do Guilherme. Ela quer muito, pensa forte e banca toda essa vontade. A poesia dele tem de saída uma sensação de “grandeza” que a separa de quase tudo que se faça à sua volta. E se trata de uma grandeza que vem da competência, sim, da capacidade de executar o planejado, mas também de uma espécie de proposta, de propensão, de pretensão mesmo, das mais saudáveis. Ser grande, ser pouco, ser tudo, ser todos, ser nada.

Poesia pode ser diversão. Pode ser leve, e nisso pode ser também perfeita.

Poesia pode ser prosaica e analítica.

Poesia pode ser qualquer coisa. Mas em seus melhores momentos ela é tudo ao mesmo tempo: música e sentido, pensamento, ação e enlevo. E nesses casos, ela não te deixa mais ser o mesmo de antes.

A poesia do Guilherme neste livro, quer essa posição. E alcança.

Quer marcar você e o mundo.

*

Por fim, deixa eu te dizer uma última coisa. A mais central.

O Guilherme sabia que eu ia escrever esta resenha que não é uma resenha. Eu avisei. E avisei que ia aproveitar o texto para dizer aqui para você (e a quem interessar possa), uma coisa que até agora eu só disse a ele, em particular.

Este livro, “Potlatch”, é fundamental. Vai ficar. É lindo e poderoso. Mas o que mais me interessa, pessoalmente, é ver ainda onde vai dar o trabalho do seu autor. Esse autor que é, na minha mais que modesta opinião, pura e simplesmente o maior poeta da sua geração.

Livro 

“Potlatch”, de Guilherme Gontijo Flores. Todavia, 128 páginas, R$ 59,90. Poesia.

Sobre o/a autor/a

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