Elizabeth Gilbert, “Cidade das Garotas” e as expectativas que ficaram para trás

"Cidade das Garotas", de Elizabeth Gilbert, fala sobre a coragem de ser mulher e viver uma vida não convencional

Se você já ouviu falar de Elizabeth Gilbert, é provável que tenha sido pelo hit literário e cinematográfico “Comer, Rezar, Amar”, de 2010. No livro, Gilbert tocou milhões de mulheres do mundo inteiro com uma protagonista que, após viver um triste divórcio, resolve se satisfazer com uma viagem pela Itália, Índia e Bali. Isso, numa era em que as mulheres ainda tinham pouca intimidade com o conceito de satisfação. É uma espécie de férias mentais para quem não tem a opção de fazer o mesmo.

“Cidade das Garotas”

Porém, antes de descartar a possibilidade de mergulhar mais fundo na produção de Gilbert, considere ler “Cidade das Garotas”, de 2019. Nessa obra, a autora americana se volta a quem veio antes dela e se entregou a vivências pouco convencionais quando tais comportamentos tinham repercussões muito mais graves.

Li “Cidade da Garotas” quando foi lançado, naquele mundo distante antes da pandemia. E reli na última semana com aquela sensação de querer avançar na vida das personagens, mas sem encerrar prematuramente o prazer que é estar com um bom livro. Mas antes de falar sobre o livro em si, me deixe explicar por que estou falando dele agora.

Uma fé inabalável

Na vida eu não sou dada a confiar em esoterismos. Não acredito em horóscopo, não uso homeopatia, não acredito em poderes superiores. Mas cresci com uma fé inabalável: o que quer que a vida nos imponha de desafio, um livro poderá nos ajudar a encontrar a resposta. Desde sempre, quando numa encruzilhada, é sempre para um livro que me volto.

Administrando um jornal local sem o poder e nem a fortuna que tais empreendimentos costumam consumir, sendo mãe de três crianças pequenas durante uma pandemia e vivendo no Brasil de hoje, os últimos três anos me esgotaram física e mentalmente de tal forma que me vi incapaz de pôr os pés para fora da cama.

Infelizmente, com exceção dos títulos de autoajuda, que graças à minha resistência a esoterismos, não me atraem, é difícil encontrar uma obra que preencha a descrição: “como sair do fundo do poço e se permitir ter esperança no futuro”. Em especial quando você olha em volta e consegue contabilizar muito pouco daquilo que se pode chamar de “realizações e conquistas”, aquilo que listamos mentalmente quando queremos nos convencer que, a despeito do quão difícil foi e é o que vivemos, valeu a pena.

Joan Didion

Eu já estive por aqui antes. Quando minha mãe morreu em 2006, também fiquei sem rumo, naquela solidão que só quem está sofrendo uma dor interior conhece. Naquela época, eu encontrei o caminho pelas mãos de Joan Didion e seu manual do luto, “O Ano do Pensamento Mágico”. Foi como ter uma avó carinhosa, mas severa, que valida nossos sentimentos, os acolhe, mas também nos empurra para frente, de volta para o mundo.

Foi nessa busca que “Cidade das Garotas” reapareceu para mim. Lembrava com carinho do título, mas pouco da história, que é, na realidade, uma carta escrita por Vivian para Angela a fim de explicar o que a autora da carta era para Frank, o pai de Angela. Vivian, na intenção de dar conta da resposta, resolve começar do começo, no fim da década de 1930, quando tinha 19 anos e saiu da casa dos pais no interior para morar com a tia em Nova York.

Não se preocupe, não vou revelar muito mais da história, muito menos da resposta. Mas saiba disso: Vivian é uma moça que se sente deslocada. Por um lado, sabe que há certas expectativas para ela, de ser uma “boa moça”, de estudar e de se casar com um homem bom, aquele mapa do tesouro para as jovens da época (e para tantas outras muito depois disso).

Um talento

Aos 19 anos, porém, não só ela não tem perspectiva nenhuma, como só consegue elencar um talento: o de costurar. Quando a tentativa de fazer uma faculdade respeitável acaba, os pais decidem que ela deve ir morar com a tia para aprender a dar conta de si mesma.

Só que a tia é a proprietária de um teatro em Nova York e Vivian se torna responsável pelas roupas do elenco, que inclui todo tipo de personagem. Daí em diante, ela vai seguir um caminho que deixará para trás aquelas expectativas de “boa moça” e que, por falta de vocabulário, vamos chamar de não convencional. Claro que, ao entrar nesse mundo fora do comum, Vivian se cerca de outros iguais: mães solteiras, lésbicas, boêmios, showgirls, mulheres solteiras e homens covardes.

Primeiras feministas

O que Vivian vive é a história das primeiras feministas, aquelas mulheres que se viram insatisfeitas e se colocaram diante da tarefa de encontrar satisfação, a despeito das dificuldades e barreiras que sabiam que iriam encontrar. Essas foram as primeiras mulheres que se viram sem poder, sob a escala tradicional, elaborar qualquer medida de sucesso.

Mas foi a capacidade que tinham de viver o desconforto de não se encaixarem que nos deu a possibilidade de ampliar nossas expectativas e satisfação. O que se passa nas páginas da carta de Vivian é que ela viveu uma vida diferente. Não ruim e nem pior. Só diferente.

O fio da meada

Muitas vezes, quando jovens, nós tendemos a descartar quem veio antes de nós como antiquado, inútil. A arrogância própria da juventude não é capaz de ver que, se estamos pegando o fio da meada agora, é porque alguém o trouxe até aqui. Em “Cidade das Garotas”, Gilbert nos mostra o que custou e o que significou isso.

Quanto a mim e minha busca por um livro que me dê respostas, “Cidade das Garotas” talvez não tenha me respondido diretamente. Mas me deu permissão para chorar a morte de algumas expectativas que ficaram para trás e para reconhecer que mesmo a ausência de sucesso pode ser a medida de que vivi e para mim e para quem aprecia minha existência, isso já é o suficiente.

Livro

“Cidade das Garotas”, de Elizabeth Gilbert. Tradução de Débora Landsberg. Alfaguara, 551 páginas, R$ 39,90.

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