De Masi e os olhos que viram Eco, Foucault, Lévi-Strauss…

Primeiro convidado do projeto Phi, De Masi é de uma gentileza sem par com ouvintes

Meu Uber atrasou porque a motorista achou que o melhor era seguir o GPS, e não o caminho óbvio. Depois que ela havia se embrenhado num lugar que nenhum de nós dois sabia onde era, acabou a bateria do celular. A tecnologia tem dessas.

Quando chego ao Teatro Positivo, a plateia está ficando cheia. Meu papel ali será pequeno: vou ler as perguntas das pessoas para o palestrante. Mas isso me dá um acesso aos bastidores, fico feliz. Quando subo no palco, passo dois metros para lá e já vejo o primeiro convidado do Phi, um belíssimo projeto que pretende trazer intelectuais de renome a Curitiba.

Domenico De Masi, um sujeito de quem ouço falar há décadas, está ali, paradinho, encostado num púlpito reserva, num terno azul bem cortado – mas que é o único sinal externo de distinção. De resto, parece um avô meio budista, despreocupado com o fato de ter de esperar para fazer o que veio fazer.

Aos 81 anos, tempo não parece ser uma preocupação. Como se sabe, ele prega o ócio criativo. A conversa. O fim da correria. E é assim que o vejo, cotovelo na madeira, queixo sobre a palma da mão.

Somos apresentados e… não há ninguém falando com ele. Me descubro na feliz função de entreter o sujeito. Para alguém que gosta de conversar, uma maravilha. Começamos com o óbvio (“o senhor gosta mesmo do Brasil?”), mas logo estou me sentindo à vontade para falar do que me interessa.

Em pouco tempo ele está me contando que conheceu Leonardo Sciascia (um siciliano que gosto de ler), foi amigo de Alberto Mravia (!) e de Umberto Eco (!!!). Eu não falo italiano, mas ouço bem. Ele não fala português, mas ouve bem. Tudo funciona lindamente.

De repente, chega a Jhenifer. Pausa: se você não conhece a Jhenifer, devia conhecer. Aluna de Ciências Sociais, ela é a pessoa que faz as redes sociais do Plural. Divertidíssima, fala por todas as articulações do corpo, não só pelos cotovelos. Sem qualquer pudor, sequestra o velhinho imediatamente.

Quando vejo, a Jheni está no camarim com ele fazendo uma live. Minha amiga com o amigo do Umberto Eco.

Os dois voltam já engatados numa conversa sociológica, que me deixa meio de fora. Bourdier pra cá, Gilberto Freyre pra lá. E o homem conta que foi aluno de Foucault e Lévi-Strauus. Assim, como se não fosse nada. Quando vê que estamos impressionados, encolhe os o,bros, como quem diz, que-culpa-eu-tenho. “Esses eram os professores…”

A organização me disse que não vai haver tempo para perguntas minhas, provavelmente. A plateia quer perguntar tudo, e tem preferência, claro. Eu que faça uma entrevista outra hora. Então aproveito para tirar minha dúvida. No fundo, essa história de que no futuro não seremos mais tão oprimidos pelo trabalho não soa um tanto… marxista?

“Mas eu sou um marxista!”

No Brasil do século 19 em que vivemos, meu cérebro me diz que devo alertar o camarada a não falar isso em voz alta. Pode dar rolo.

Logo chega mais gente, os organizadores do evento roubam De Masi. A seguir, começa a palestra. Não é nada que alguém que andou lendo sobre ele para entrevistá-lo não esperasse. O mundo é pós-industrial… É preciso que trabalhemos menos horas… O que fazer com o tempo livre é o dilema… Precisamos aprender a conviver com o ócio…

O sujeito, evidente, fala bem e tem todo um plano na cabeça. Invejo a clareza e a lucidez dele. Chegou a hora das perguntas.

Entro no palco e o sujeito me botou tão à vontade que faço uma propagandinha do Plural. Quem resiste. Faço uma pergunta, ele fala de um repórter gordinho que o entrevistou e brinco que fiquei ofendido. Ele vai responder outra pergunta e eu (de onde tirei isso?) mando o aluno de Foucault esperar que eu termine… A coisa caminha prazerosa, simpática.

Em pouco tempo (não durou nada!) tenho que acabar e liberar o sujeito para os autógrafos. Mas antes, na última resposta, ele faz um elogio ao Brasil miscigenado que me deixa alegre da vida. Todo mundo sai da palestra com o ânimo lá no alto, esquecendo a barbárie em que vivemos.

Aperto a mão dele, agradeço, vou embora. No caminho ainda ganho uma carona de uma pessoa gentil.

Mas o tempo todo pensava numa frase que depois o Google me lembrou que era de Roland Barthes. Ao ver uma foto de Jeronimo, o irmão mais novo de Napoleão (nunca fotografado), ele pensou, emocionado, que estava vendo os olhos que viram o imperador.

Eu tinha acabado de conversar com o sujeito que conversou com Umberto Eco. Por um momento, De Masi nos pôs a um grau do topo da escala humana. E faz bem se sentir perto disso. Como faz.

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