Curitibano deixa a informática para virar tradutor do alemão e vencer o Jabuti 2021

Daniel Martineschen se reinventou como pesquisador de Letras e foi o único paranaense na lista do prêmio mais tradicional da literatura brasileira no ano passado

O curitibano Daniel Martineschen venceu o Jabuti 2021 de melhor tradução com os versos de “O divã ocidento-oriental”, de Johann Wolfgang von Goethe. Ele saiu do prêmio como o único paranaense na lista de vencedores divulgada no finzinho de novembro do ano passado. Em anos de pandemia, isso quer dizer que foi ontem.

Hoje, Martineschen conversou com Plural sobre o trabalho de verter a poesia de Goethe do alemão para o português. O livro levou 11 anos para ficar pronto, tempo que inclui um doutorado, um sem-número de pesquisas e muitas conversas com colegas da Universidade Federal do Paraná e com a equipe editorial da Estação Liberdade, responsável pela publicação do livro.

Formado em Ciência da Computação, Martineschen é doutor em Letras, tem 40 anos e vive em Curitiba. Desde 2019, é professor da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis. Depois de dois anos de aulas remotas, ele vai se mudar para território catarinense nos próximos meses. As aulas presenciais devem começar em abril.  

A conversa a seguir começou no Instagram, continuou no Gmail e terminou no WhatsApp. Em algum momento da entrevista, Martineschen se desculpou pelas “curitibanices”, mas é bem divertido ver um curitibano usar “daí” até quando fala por escrito. “Eu não me contive”, diz o tradutor. “Como o Plural é curitibano, acho que estamos autorizados.”

Daniel Martineschen: “Queria muito um tema desafiador para consolidar a minha mudança de carreira”. (Foto: Acervo pessoal)

“Divã ocidento-oriental” foi tema de sua tese de doutorado, mas quando você se deu conta de que estudaria o livro a fundo e o traduziria?

Tudo começou em 2011, após duas disciplinas com o professor Maurício Cardozo na UFPR, uma sobre o “Divã” e outra sobre os poetas persas Hafez e Rumi. Aí foi como um raio: eu queria muito um tema desafiador para consolidar a minha mudança de carreira (me formei primeiro em Ciência da Computação), e inclusive fazer um projeto de doutorado. Em final de 2011 submeti um projeto de doutorado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPR, e em 2012 começou o trabalho com o Divã, daí. Desde então são cerca de 11 anos de convivência com esse grande livro, que me trouxe muitos desafios, conhecimento, muitas amizades e, ano passado, uma alegria enorme quando fui agraciado com o prêmio Jabuti na categoria “Tradução”.

Esse prêmio é a coroação desses 11 anos de trabalho, e só foi possível graças ao apoio da minha esposa e também à bolsa de estudos que recebi durante o doutorado. Para além do meu sucesso pessoal de recebê-lo, meu desejo é que ele faça Goethe ser lido e conhecido, para além do “Fausto” e do “Werther”. Gosto sempre de dizer que o trabalho de tradução nunca é individual, mas é feito coletivamente, ainda que cada tradutor(a) lide bastante tempo a sós com o texto. Devo muito às conversas com colegas da UFPR, às várias oficinas de tradução de que participei, com colegas brasileiros e alemães, e também à toda a equipe editorial da Estação Liberdade. Porém, a responsabilidade pelas grandes escolhas do texto recai sobre quem traduz, então no fim das contas é tudo culpa minha, daí.

Na poesia – mais do que na prosa –, o tradutor precisa tomar decisões difíceis envolvendo forma e conteúdo. No seu trabalho com Goethe, quais foram as decisões mais difíceis?

Não gosto de diferenciar tradução de poesia e de prosa. Se a poesia em geral tem uma forma mais evidente e evoca efeitos sonoros e rítmicos mais perceptíveis (ou será que temos maior expectativa por formas e efeitos?), a prosa em geral tem um jogo de maior extensão, que se aproveita do maior fôlego do texto, mas que não dispensa a forma, os ritmos e efeitos sonoros. E não precisa ser a chamada “prosa poética”. Se não tiver ritmo e forma, não é literatura, seja poesia ou prosa. Então, é outra questão tipo Tostines, daí.

Mas não saberia dizer exatamente quais decisões foram mais difíceis na tradução do “Divã”, foram milhares. Mas teve uma decisão fundamental do início do trabalho que simultaneamente facilitou e dificultou tudo: eu queria recriar os poemas com recursos formais (quantidade de sílabas, estrofes, andamento, esquema de rimas) que espelhassem o original, na medida do possível. A parte fácil foi que a maioria dos poemas do “Divã” usa o chamado “tetrâmetro trocaico”, ou seja: quatro pares de sílabas poéticas com andamento troqueu (forte-fraca). Esse esquema métrico pode mais ou menos ser vertido em português por meio da redondilha maior (sete sílabas poéticas, alternância fraca-forte, duas sílabas átonas de “sobra” no final). O esquema de rimas (alternadas ABAB e rimas pareadas) também era bastante tradicional, com exceção de alguns poemas que reproduziam a monorrima típica da poesia persa.

A parte difícil de colocar isso em português vem de um fator que à primeira vista não parece importante, mas que no fim me fez rebolar: a língua alemã tem muitos monossílabos significativos, ou seja, muitas palavras de uma sílaba só (quem diria, já que alemão é famoso por ter palavras compostas gigantes, né?). Por outro lado, em português a maioria das palavras têm duas sílabas ou mais, e muitos monossílabos são pronomes, preposições, conectivos etc. Ao mesmo tempo em que isso criou dificuldades, abriu espaço para a invenção e rejuvenescimento de palavras pouco usadas, e me permitiu criar soluções muito interessantes.

Outra dificuldade decorrente dessa escolha de recriar a forma original reside nos versos agudos e graves, ou seja, que terminam respectivamente em palavra oxítona e paroxítona. [O poeta] Glauco Mattoso lembra que esses versos também se chamam masculinos e femininos. No “Divã” esse acento do final do verso tem grande significado, sobretudo nos momentos de diálogo entre os amantes Hatem e Zuleica. Os versos dele são predominantemente masculinos, enquanto os dela são sobretudo femininos. Como entre 80% e 85% das palavras do português são paroxítonas, o verso masculino fica difícil de recriar, sobretudo se quisermos fugir de opções fáceis de rima (-ão, -inho, verbos no infinitivo). Mas quando você acha que conseguiu achar solução pra isso, o malandro do Goethe inventa uma estrofe chamada estrofe de Zuleica, com quatro versos alternando masculino e feminino, pra espelhar o diálogo entre os amantes. Aí lascou, teve momentos em que capitulei. Mas fiz o meu melhor, daí.

Você acha que a poesia hoje é mais estudada do que lida?

Essa é uma questão meio Tostines, pois sem estudo não tem poesia, e sem poesia não tem estudo. A cena atual de poesia é poderosíssima e muito viva, sobretudo porque a poesia sempre sabe se reinventar e aproveitar os muitos espaços que os meios disponibilizam a quem escreve. Hoje a poesia contemporânea acontece não mais só nos livros, saraus e alfarrábios, mas também nas redes sociais, em blogs, no Twitter, em videoconferências, em tantas formas que é difícil acompanhar. É verdade que muita gente que escreve poesia está nas universidades, e é gente que estuda e traduz poesia (pra ficar só em exemplos que vêm à cabeça: Paulo Henriques Britto, Guilherme Gontijo Flores, Francesca Cricelli). Mas não acho que a poesia seja matéria de tratados escritos em densos tomos, feitos por doutos e doutas que usam mesóclise. A poesia é sempre viva, e a poesia de épocas passadas (da Antiguidade, dos tantos povos originários, da Europa no século 19, do entreguerras, you name it) está aí viva e sendo lida, relida, ressignificada, muitas vezes justamente por estudos e comentários. Não sei se respondi, mas acho que os estudos dão sempre uma chacoalhada na poesia, e a poesia exige os estudos necessários, daí.

Antes de encarar Goethe, você traduziu algum outro autor ou livro?

Sim, o primeiro livro que traduzi sozinho foi a biografia “Sabina Spielrein: de Jung a Freud”, da autora suíça Sabine Richebächer, publicada pela Civilização Brasileira. Antes disso participei da equipe que traduziu “Espaços da recordação”, de Aleida Assmann, pela Editora da Unicamp. O primeiro livro de literatura que traduzi foi “Travessia: uma história de amor”, da autora Anna Seghers, publicado em 2013 pela Editora da UFPR. É uma novela longa que conta a história de um alemão que retorna à Alemanha Oriental depois de passar anos morando no Brasil, cheio de flashbacks e flashforwards, e de referências ao Brasil e à nossa literatura (Anna Seghers foi grande amiga de Jorge Amado e inclusive ajudou muito na disseminação dele na Alemanha Oriental). E, por fim, depois do “Divã”, publicamos pela Editora Nave, de Floripa o livro “Deutsche menschen. Gente alemã”, uma coletânea de cartas organizada pelo Walter Benjamin em 1936.

Livro

“O divã ocidento-oriental”, de Johann Wolfgang von Goethe. Tradução de Daniel Martineschen (Prêmio Jabuti 2021). Estação Liberdade, 448 páginas, R$ 72. Poesia.

Sobre o/a autor/a

2 comentários em “Curitibano deixa a informática para virar tradutor do alemão e vencer o Jabuti 2021”

  1. Rui Carlos Detsch Junior

    Parabéns pela matéria! Me vejo como um consumidor de Cultura, mas com poucas habilidades para me descrever com um propagador dela. Então sempre fico grato com ótimas materias.
    Parabéns ao Daniel pelo incrível trabalho, por toda a sua obra e formação acadêmica. Sou falante de alemão ( aprendi alemão em casa, depois estudei no Goethe Instituto daí ( daí?) morei em Berlim). Mas apesar disso tenho muita dificuldade na leitura de livros clássicos em língua alemã. Então me impressiono pela qualidade técnica e poética das traduções, e agradeço por trazê-las ao meu mundo mais viável que é a língua portuguesa.

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