Ramira

Acompanhe a estreia da atriz Maureen Miranda no conto

Parte 1

Numa data qualquer, num dia comum a Cidade Velha foi tomada. Os habitantes acordaram pensando que o dia se passaria normalmente, mas não foi isso que aconteceu, muito pelo contrário, gatos imensos e ratos sujos invadiram todos os cantos, os bueiros, as calçadas, as esquinas, os becos, as casas, os prédios, as repartições públicas, tudo. Cada morador foi obrigado a escolher um dos dois bichos para se alinhar: ou gato ou rato. O povo então foi obrigado a venerar o animal escolhido e seguir à risca todos seus preceitos. A população ficou dividida, a cidade aos frangalhos. A grande maioria das pessoas elegeu os gatos como mestres e a outra parte, os ratos. O animal eleito pelo morador se transformava em chefe mor da população e suas ordens eram seguidas sem argumentação nenhuma por parte das pessoas, que ficavam reféns da situação imposta por eles, que eram em maior quantidade e força física.

Quem se revoltava com a obrigatoriedade da escolha sofria perseguições e todo tipo de ataque dos demais, essas pessoas eram consideradas neutras e, para se protegerem de olhares abusivos e xingamentos extremos, andavam pelas ruas se escondendo e envoltas em panos.

Essa parte da população era a minoria e sofria todo tipo de preconceito das outras pessoas. Entre os gatos e os ratos as brigas eram terríveis e violentas e o povo dividido foi se transformando em bárbaro e sangrento, como se o mal tivesse imperado definitivamente em suas cabeças. Gritos de horror, pedaços humanos que eram arremessados pelo céu tornaram-se rotineiros na paisagem cinzenta e praticamente em ruínas. O cheiro nas ruas era nauseante, uma mistura de carniça com perfume barato. Um ar denso-pesado e muita fuligem deixava tudo empoeirado e deprimente. E, infelizmente é nesse lugar que vive nossa protagonista.

Ramira tinha trinta e cinco anos e morava com a mãe e a irmã caçula, Nage. O pai havia perdido a vida recentemente em uma terrível discussão que virou encrenca feia. Um outro homem, por sinal, conhecido do pai, virou seguidor fanático dos gatos e de uma inocente crítica à neutralidade de alguns, começaram a bater boca num crescente amedrontador, o antigo amigo perdeu completamente a compostura  e, com a ajuda de mais cinco  gatos, arrancou-lhe os dois braços.  Haleb, o pai, se esvaiu em jorros de sangue até morrer seco e só. Ramira caiu num poço sem fundo, era muito apegada a ele. Ela começou a agir automaticamente, como um robô, havia perdido a vontade de seguir em frente… O único motivo que tinha para continuar era Nage.

Já a mãe virou uma pessoa apática, desinteressou-se pelas filhas, pela vida que levava, deixando a menor para Ramira cuidar.  

A família ficou totalmente desestruturada. Sendo assim, Ramira teve a ideia de juntar tudo o que tinham e irem morar em outro bairro; três mulheres morando sozinhas no centro da cidade seriam presas fáceis para os gatos e seus tiranos devotos.

Praticamente do dia para a noite, Ramira virou a chefe da família, precisando dar conta de ser mãe da irmã e da própria mãe. A decisão de se mudar foi como pegar uma corda de escalada para subir um monte pedregoso, uma tentativa de recomeço num outro bairro, onde existiam menos gatos, pois eram bem mais violentos que os ratos e também muito maiores e fortes.

Depois da mudança, a mãe se tornou uma seguidora fervorosa dos ratos, fanatizou-se por eles e não saía mais de um dos templos, ainda mais  agora, morando a apenas dois quarteirões do maior deles. Nage, a caçula ficava horas sozinha e Ramira estava desempregada, passava dias à procura de trabalho… e nada.

Diário de Ramira

Eu sentia taquicardias constantes como se a qualquer momento meu peito fosse explodir. Tinha pensamentos trágicos, tinha pesadelos que andava nua pelas ruas. Minha cidade foi invadida por gatos gigantes, verdadeiros monstros e ratos bizarros de todas as cores. A única maneira dos gatos não te escravizarem era segui-los e obedecê-los. Eles eram brutos e induziam à violência, eram cínicos e manipuladores. Existiam milhares deles, vomitando bolas de pelos por todos os cantos, pisavam por tudo e massacravam os ratos que trabalhavam em seus templos de paz por um futuro melhor, para eles. Na verdade, as ratazanas não eram nada suaves e sim extremamente egoístas e só pensavam em aumentar seu território. A maior diferença entre os dois, é que os ratos não usam a violência para estraçalhar as pessoas, mas faziam lavagem cerebral que era tão terrível quanto. Vivia me escondendo atrás de lenços e xales e muros… perdi meu trabalho porque meu chefe não concordava com a minha posição neutra em relação aos bichos, vivia tentando me persuadir com mil promessas e migalhas de aumento salarial… mas eu não queria venerar ninguém. Minha mãe não parava mais em casa, estava cada vez mais devotada aos ratos, minha irmãzinha ficava sempre sozinha em casa e estávamos sem comida. Acreditava que Nage por ser pequena não percebia ainda toda a gravidade da situação, ela meio que se autoprotegia em fantasias e devaneios, mas eu percebia algo diferente no seu rosto, uma tristeza mascarada, uma névoa de mentiras infantis. E isso me desesperava.

De vez em quando ganhava um pedaço de pão de algum rato passante, eles faziam o que podiam, mas o número de gatos era infinitamente maior. Dividia o pão com Nage, mas  era muito pouco. Acordava sempre com vontade de ir embora, não havia mais nada para ser  feito. A cidade vivia em guerra, minha mãe nos deixou depois que o pai morreu assassinado por um homem mau. Digo que a mãe nos deixou porque ela vivia no templo, cercada por ratos e até parecia anestesiada.  Tudo virou do avesso, era somente eu e Nage. Sentia-me tão solitária e medrosa, não conseguia ver saída a não ser partir.

Passaram-se dias até que Ramira conseguisse conversar com a mãe, ela andava cheia de ratos dependurados pela sua roupa e só conversava com eles, nem deu ouvidos para a filha.  Quando Ramira expôs todos os problemas, a mãe demonstrou que seria um alívio elas irem embora e alegou que, após ter ficado viúva, sua missão era outra.

Diário de Ramira

O desânimo tinha tomado conta de mim. Os olhos da minha mãe estavam turvos e sem foco. Ela continha ratos sobre os ombros e um bem pequeno no bolso e não conseguia fixar sua atenção nenhuma vez nas minhas palavras. Sentia vontade de chacoalhar seus braços, de gritar, de chorar. Ela cheirava mal e tremia sem parar o maxilar, poucas palavras saíram de sua boca e um fio espesso de baba branca morava no canto dos lábios. Não parou por nada de fazer carinho na cabeça de um deles… o cheiro dela era úmido e não mais aquele cheiro que conhecia, era outro. Como isso doía. O couro cabeludo estava branco de caspa e uma espécie fina de sebo cobria toda sua cabeça. Em outros tempos minha mãe tinha o mais belo perfume, o cabelo fino e sempre arrumado. Como isso dói. Perdi os dois, pensei, o pai em sangue e a mãe em mente. Como isso dói.

Quem morava no centro da cidade dormia pouco. Os gatos comandavam marchas bem cedo em homenagem a eles mesmos e o alvoroço dos ratos em retirada desesperadora era barulhento.  Os templos dos pequenos ficavam em ruas paralelas e nos bairros afastados, onde a mãe das meninas estava morando. Suas filhas se sentiam abandonadas e como não encontravam saída para aquela situação acabavam dormindo o dia todo, como forma de fugir do pesadelo que estavam vivendo, pela fraqueza, lhes faltava energia de permanecer em pé. As duas deitavam num único colchão de solteiro no canto do quarto, Nage abraçava a irmã, havia um cobertor de lã verde, antigo… elas conversavam um pouco e acabavam pegando no sono… dias e dias eram assim.

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Uma das coisas que mais me angustia era dormir de dia. Como eu e minha irmã sentíamos muita fome, estávamos fracas e a tontura por falta de comida fazia a gente adormecer, como se no sono pudéssemos ter a vida que desejássemos. Nage pedia a presença da mãe e eu não sabia mais o que dizer, qual desculpa inventar, ela tinha apenas seis anos e ficava com muita pena de expor toda realidade a ela.  Como morávamos na periferia não haviam tantos estrondos como no centro, mas também não havia tantas coisas… nem emprego, nem comida, nem oportunidades, nem esperança, nem amigos, nem nada. Ou as pessoas estão nos seus subempregos com chefes gatos imensos ou estão nos templos  que  ficavam perto da nossa casa, rezando com ratos de todos os tipos e cores e cheias de ideais estranhas. Às vezes pensava em me converter como a mãe, mas assim que via minha irmã, desistia, não podia fazer isso com ela, não seria justo e, para ser sincera, não concordava em absoluto com os ratos… eles eram menos piores e tal, ajudavam os humanos em pequenas tarefas, os recebiam em seus templos de oração, eram prestativos e bons ouvintes, mas ao mesmo tempo eram extremistas, rancorosos e pouco higiênicos e quando resolviam lutar por algo, poderiam ser bem agressivos sim. Arregalavam os seus olhos pretos, projetavam de maneira estúpida seus dentes para fora e davam inúmeras chibatadas com suas caudas de tom rosado. Uma vez, nunca vou esquecer, presenciei dez ratinhos se defendendo de um humano devoto de gatos, eles o destruíram em minutos, arrancando pedaços de carne até o pequeno homem se acabar, ele urrava de dor e ódio por não ter conseguido acertá-los com um pedaço de tijolo, foi assustador… reparei que eles viram que eu os estava observando e mesmo assim fizeram o serviço.

Na minha opinião, quando agiam assim, se igualavam aos gatos…como sentia nojo daquilo tudo!

A cidade dividida amanheceu ventosa e ainda mais sombria. Ramira saiu de casa, por volta das cinco horas da manhã, ainda estava escuro, mas como Nage não passara bem a noite, ela foi procurar comida e algum tipo de ajuda.

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Nage tinha ardido em febre a noite toda,  não havia termômetro em casa, mas ela tremia de frio e suava ao mesmo tempo e não dizia coisa com coisa. Fazia duas semanas não via a mãe, às vezes pensava que ela podia ter sido atacada por pessoas fanáticas por gatos ou até mesmo pelos próprios gatos, será? Não queria fixar minha cabeça nessa possibilidade, senão enlouqueceria.  O que importava era que teria de sair de casa em busca de comida para nós. Achava que Nage estava sentindo muito a ausência da mãe, além da fome. Os ratos transmitiam doenças e por dias seguidos eu a via brincando com três deles sobre a cama.

Para onde iria? Eu pensava, já eram cinco e dez da manhã… se virasse à direita temia passar pelo templo grande que a mãe frequentava e se descobrisse algo ruim, que ela estivesse morta, que ela tivesse sido assassinada terrivelmente, sei lá. Se eu virasse à esquerda em direção ao centro, temia encontrar algum gato tirano e descobriria finalmente que eles poderiam ser muito violentos comigo… se eu seguisse reto pela rua, iria encontrar o mar. Será que a praia poderia ser uma saída pra mim? Pra nós? Decidi, então, ir reto.

Entre nuvens de neblina fria e densa, surge Ramira, uma moça como tantas outras, envolta em um xale para se esconder de algo, de todos, do mundo, dos bichos, das pessoas.

Ela vinha caminhando reto pela rua de sua casa, andava apressada e passava quase desapercebida. Lá, em direção ao mar, não havia quase ninguém na rua, era cedo, frio e perigoso… pequenos grupos de pessoas saíam de suas casas em direção ao centro, para a tal marcha.

Os templos dos ratos, ainda fechados, rangiam suas janelas.  Ramira pedia ajuda como uma mendiga de rua faz, mas sem sucesso.

Diário de Ramira

Decidira correr pela rua, para me sentir mais forte, mas de tão fraca acabei caindo e machucando um pouco meus joelhos, até um momento já tinham se passado duas horas de busca… e nada. Nenhum pedaço de pão, nenhum contato visual, nenhuma esperança, nada, nada, só o mar furioso ao longe. Precisava achar alguém, uma pessoa boa, uma palavra amiga. Estava intacta de mim mesma, parada na areia, olhando pra frente. O sol brilhava forte, o vento cessara, mas ainda sentia frio. Ficaria  estática ali, não sabia mais o que fazer, não sabia mais.

Ramira na areia da praia parecia uma estátua envolta em panos. O mar estava bravo e o zumbido do vento parara de repente. Depois de algum tempo um homem de olhar assustado e doce se aproximou dela, também usava uma espécie de xale. Ele observou que lágrimas escorriam dos olhos da moça, mas sua expressão não era triste, não era nada. Ele ficou parado do seu lado direito reparando no rosto dela e perguntou se podia ajudá-la de alguma forma. Ela respondeu com outra pergunta, indagou se ele era médico ou curandeiro. Não, ele disse, mas contou que ainda tinha mantimentos para doar e entendia um pouco de cuidados emergenciais, caso ela precisasse. 

Ramira então se encheu de esperança, aceitou a ajuda e os dois seguiram em direção a casa dela. No caminho o homem bom disse que se chamava Bud e que estava recrutando pessoas que não queriam seguir nem gatos, nem ratos, para partirem de barco para um lugar distante, cheio de outros bichos. Disse também que nesse lugar vivem elefantes, cachorros, macacos, uma infinidade deles e que todos eram muito amáveis. Bud contou que com boa vontade caberiam cerca de cem pessoas na embarcação e que oitenta já estavam confirmadas. 

Ramira escutava tudo atentamente e certa de que Nage ficando um pouco mais forte, em dois dias partiriam com ele e os demais para um recomeço e que infelizmente a mãe ficaria pra trás, caso não conseguisse convencê-la a acompanhá-las. Isso seria terrivelmente triste para as meninas, mas não havia outra saída.

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Achava realmente que uma espécie de anjo tinha me encontrado. Ele também usava xale e conseguia chorar na sua frente sem me sentir envergonhada. Ele se chamava Bud e ofereceu para fazer uma refeição na minha cozinha, havia dito também que não era médico, mas acreditava que uma boa sopa curaria minha irmã. Caminhamos como velhos amigos em direção a minha casa. Pela primeira vez em meses cheguei sentir um pingo de esperança. Ele me ofereceu três lugares num barco grande que partiria em até três dias. Fiquei com o coração apertado só de pensar em ter de deixar a mãe. Resolvi que no dia seguinte, bem cedo,  passaria no templo dos ratos e faria de tudo para que a mãe aceitasse ir embora comigo e minha irmã. Não havia mais nada a perder, ia cuidar para que Nage ficasse boa logo e iríamos com Bud para bem longe… mas meu peito estava dilacerado, a mente aos pedaços quando pensava na mãe, achava que ela não viria conosco e pensava que não teria forças para me despedir. Como se faz isso? Como?

Os dois estavam bem próximos da casa de Ramira quando ela subitamente sentiu uma pontada forte na nuca, de tão violenta a dor ela caiu no chão. Bud levou um susto e sem saber o que tinha acontecido, ajudou a nova amiga a se levantar. Da onde  teria vindo esse ataque? Ramira chegou a pensar. Seu corpo estava pesado e rijo. Bud tirou seu xale e enrolou em torno dela, para protegê-la de algo que ninguém sabia. Não demorou para ela se  recompor, estranhamente se sentiu segura nos braços de um homem que acabara de conhecer, e, em frente ao número setenta e cinco, virou a chave e entraram.

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Uma espécie de pancada na nuca me derrubara na calçada de uma hora para outra, foi uma dor aguda. Cheguei a pensar que estava levando uma surra. Bud me abraçou com seu lenço e, novamente em pé, devolvi o abraço. Não sei bem o motivo, mas não queria nunca mais sair dali, do calor que me envolvia. Ele tinha um cheiro bom. Fechei meus olhos por um tempo curto que pareceu longo, muito longo e, por alguns segundos, achei que estava apaixonada. Será que eu era louca? Tirei forças pra sair dos seus braços, achei as chaves no fundo da bolsa, girei a maçaneta e entramos.

O silêncio reinava dentro da casa, o pé direito era alto e das grandes janelas velhas  sempre dava para escutar o vento e o rangido do assoalho de madeira, mas dessa vez, nenhum ruído. Ramira entrou animada chamando pela irmã, atravessou a cozinha, pediu que Bud se sentasse um pouquinho por ali. Ele preferiu ficar de pé. Ninguém na sala… esquisito, Nage sempre sentava no sofá para alguma brincadeira ou para assistir a antiga tv. Quando abriu a porta do quarto, viu a pequena na mesma posição de quando saiu, coberta até a altura dos ombros, dormindo profundamente. A luz do quarto era amarelada e acolhedora, apesar da poeira, a imagem era calma e parecia uma pintura de Hopper. 

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Entramos pela cozinha. Tudo estava parado, um estranho cheiro de flor no ar. Nossa casa era simples e espaçosa, tínhamos poucos móveis e quase nada de objetos de decoração. Depois que o pai morreu, perdemos o gosto de arrumar, de enfeitar as coisas. As caixas com adornos e enfeites faziam filas pelos corredores, todas ainda com fitas adesivas. Bud ficou na cozinha. Reparei que seus olhos eram rápidos, confesso que sentia um certo incômodo por não ter nada para oferecer. Nage ainda estava dormindo, devia ser de fraqueza, fechei a porta do quarto e voltei para a cozinha para ajudar a fazer a sopa.

Bud lavou todos os mantimentos que guardara em sua mochila. A sopa seria de tudo um pouco. Ramira descascava batatas, enquanto a água fervia. Os dois não paravam de conversar nem por um minuto. Por diversas vezes eles riram, por diversas vezes experimentaram o gosto da fervura, por diversas vezes se esqueceram dos dramas da cidade em que moravam.

Ramira chegou a fantasiar que nada de errado acontecia, que Bud era um velho amigo de infância que tinha reaparecido.

Finalmente cheirava muito bem tudo aquilo, Ramira arrumou a mesa para três, como há muito tempo não fazia e sem pensar em nada que não fosse a janta. Posicionou os pratos fundos de louça amarelada, três colheres pesadas e três copos com água, até toalha com flores colocou. Bud, com alegria colocou a panela fumegante no centro da mesa. Ramira finalmente foi buscar Nage, não se continha de ansiedade para ver a carinha da irmã. Abriu a porta e de novo sentiu a dor na nuca, com o tombo no chão de madeira o estrondo foi grande e Bud correu para socorrê-la.

Dessa vez ela segurou a cabeça do amigo com as duas mãos, olhou bem perto dos seus olhos e pediu quase sem voz que ele olhasse para a pequena, porque ela não conseguiria. Pediu que ele fizesse tudo sozinho, pediu que a deixasse sentada ali mesmo e disse que entendia a dor, disse que agora sim entendia a dor. E com o corpo todo rasgado cantarolou algo que não lembrava mais, como uma louca de hospício faz.

Diário de Ramira

Naquela hora, naquela noite magoada, escrevia para registrar a maior de todas as dores que já senti e sinto todos os instantes. Congelando minhas veias, seco, dissequei todas.

Falhei, eu demorei, fui egoísta e desequilibrada. Nage morta, enquanto eu apaixonada, eu morta, um pedaço de mim ainda vivia dentro do mundo que construí pra mim? A que horas ela tinha ido? A dor da minha cabeça tinha sido um aviso, um sinal? E quando naquela manhã bem cedo saí de casa em busca de ajuda eu já sabia que Nage havia partido de alguma forma… não conscientemente, mas no fundo, eu já sabia. Quando saí da cama dei “até logo” e ela não respondeu, nem se moveu, não me viu mais.

A morte era cinza, indolor, muda e muito bela. A morte tinha cheiro de injeção com poesia e cobertor verde. Minha irmã tinha um cobertor verde e não tomará a sopa da salvação. Eu sim, seria egoísta o suficiente, voltaria para a cozinha e me alimentaria da tal sopa, era a única opção que me restava. Chamei Bud, comemos em silêncio, nada de lágrimas, nem lamentações, nada de lembranças amargas, só alívio. Estava horrivelmente livre e poderia ir embora daquele lugar.

O dia amanheceu ensolarado como há tempos não se via. Ramira e Bud acordaram abraçados no piso da cozinha. Como se já soubessem o que haveria de ser feito, ambos executaram ações sem pronunciar uma palavra. Ele foi num silêncio sepulcral até o quarto, enrolou o pequeno corpo que jazia sobre o colchão num lençol. Tomou cuidado para cobrir o rosto, as mãos, tudo. Então carregou a menina nos braços até o sofá da sala e a deixou bem ali. Enquanto isso, Ramira fez sua mochila, guardou  oito peças de roupas, meias de lã, alguns lenços, dois livros, alguns objetos de higiene pessoal e uma foto do pai e da mãe quando jovens. Pediu gentilmente que Bud a deixasse sozinha no quarto, pois queria escrever uma carta para a mãe que colocaria sobre o corpo da irmã na sala, que é onde se velam os mortos. Desistiu de falar pessoalmente com a mãe, seguiria em diante com Bud. De alguma forma, estava mudada, estava longe e naturalmente equilibrada.

Diário de Ramira

Dormi pesado e frio, apesar dele ser leve e quente. Fizemos amor a madrugada toda, queria sentir qualquer coisa, resolvi, sem racionalizar, amar aquele homem profundamente. Acordei embriagada em paixão e desassossego, em horror e esperança, eu me via perplexa diante da vida. Fiz a mala da partida automaticamente e sozinha, no quarto, escrevi uma carta pra mãe.

Carta para mãe

Mãe,  

Eu juro que a última coisa que eu queria era te escrever essa carta, mas ao ponto em que chegamos não tem mais volta. Há semanas você nos deixou pra trás. A nossa vida virou um mar de lama e não quero me afogar nela. Tenho alguma ideia que você não está sozinha, deve estar com seus amigos ratos, espero que eles te auxiliem nesse momento tão terrível. Às vezes penso que você nunca lerá essa carta e nem chorará a perda dessa filha. Às vezes penso que tudo isso não é real e que ainda moramos os quatro, unidos como uma família. Mas nesse momento, nesse quarto triste, minha mão febril escreve quase sozinha essas palavras e as minhas não lágrimas vem me lembrar que o presente é outro. Queria que tivesse sido diferente, que Nage estivesse viva  e alegre e que cantasse alto indo brincar na pracinha. Mas não mãe, não. Quando você se foi tudo piorou, fiquei desempregada e muito, muito perdida e pobre e nós passamos fome e a duas noites atrás, Nage me deixou, ela não aguentou e nem eu, eu confesso, eu não consegui. 

Mas hoje, nessa manhã de sol estou partindo para outro lugar, estou indo com um anjo bom que me deu a mão quando mais precisei e nossas mãos estão juntas agora. Mãe… não sei o que sinto por essa mãe que você virou, mas te amei muito. Vou parar por aqui, com um “querer” que dói em mim. ass: Ramira

A porta grande da casa se fechou com um toque seco, Ramira fez questão de não chavear. De mãos entrelaçadas os dois seguiram rumo à praia. Sim, ela olhou para trás cerca de três vezes, e nas três vezes chorou. Sentia tantas coisas enquanto andava. Bud afagava seu cabelo, abraçava seu corpo, segurava forte seu braço para que não caísse, para que ela não despencasse em algum buraco mental, cavado a machadadas rápidas de dor. Os joelhos ainda inchados e roxos do tombo de dias atrás. Depois de uma hora o sol estava a pino. As pessoas de posições neutras começaram a surgir de todos os cantos, mulheres eram a maioria. Havia também crianças, adolescentes, homens, até alguns cães. Todos com suas bagagens reduzidas, todos com semblante de preocupação e um certo alívio.

Diário de Ramira

Resolvi não trancar nossa porta, por algum motivo tive medo que a mãe tivesse perdido a chave. Foi muito duro deixar Nage naquele sofá tão vazio, tão sem vida. Bud fez de tudo por mim e me senti segura a seu lado, há muito tempo não me sentia assim. O sol estava forte na praia e era difícil perceber quem era homem, quem era mulher, todos se enrolavam em lenços e mochilas. Alegrou-me ver dois cachorros com uma menina. Esperamos cerca de uma hora o barco chegar e quando finalmente despontou, Bud tomou as rédeas da situação e, como um pirata poderoso e gentil, comandou nosso embarque.

Ramira e tantos outros subiram com a ajuda de Bud, que era firme e esperançoso. Respondia todas as dúvidas que lhe dirigissem. O barco era largo, os bancos laterais eram duros e os que atravessavam a largura também. Não havia cabine, se chovesse forte seria um problema. A embarcação parecia maior vista de fora do que por dentro. Continha um lugar para cada um, capas de chuva, água em garrafas de plástico, frutas e comida em lata para no máximo quatro dias, que seria o tempo calculado  do percurso até a Cidade Nova. O coração de Ramira começou a ficar acelerado quando ela cruzou o olhar com Bud e percebeu que ele também estava apreensivo. Não havia banheiro, nem cobertores, nem nada que pudesse proporcionar algum conforto. O outro homem que comandava a jornada junto com Bud era de estatura baixa, muito sério e demonstrava medo e insegurança. A família inteira desse homenzinho estava a bordo, houvesse um erro de rota, o perigo dominaria. O combustível era calculado e o acerto do caminho, imprescindível.

Diário de Ramira

Não queria sentir o que se passava no meu peito, minha boca amargava e minha visão estava turva. O barco era assustador, achei que seria de fibra, mas era de madeira. Os banquinhos eram estreitos… tentava buscar alívio no olhar de Bud, mas não encontrava. Seu colega demonstrava pavor e pouca experiência… arregalava os olhos e tratava sua família a pontapés. Ocupei meu lugar na proa, ajeitei minhas coisas debaixo do banco e guardei o assento ao lado para Bud. Começava a pensar em Nage, tentava pedir ajuda a ela, agora que virara algo invisível, mas achava que ela me castigaria por não tê-la mantido viva, e do nada, parava de pensar.

De repente, começa um pequeno alvoroço dentro do barco, pois surgem na praia dois imensos gatos raivosos que soltam grunhidos altos e, logo, outros aparecem. Um pequeno  grupo de humanos seguidores dos felinos começa a correr em direção ao barco que continua ancorado. Essa situação estressa a todos, inclusive os cães que, até então, estavam tranquilos. Crianças choram assustadas e algumas mães entoam cantigas para disfarçar a tensão. Finalmente todos embarcam em segurança e o barco levanta âncora, deixando para trás, na areia, um grupo de pessoas e gatos que fazem gestos obscenos e gritam coisas inteligíveis.

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Por muito pouco escapamos. Na areia da praia, um grupo de gente louca, fanática por gatos nos xingava de fracos, covardes e outras coisas terríveis. No comando deles, um gato nojento, em que o mal imperava forte e estúpido. Um grupo de gatos puxa-sacos chegava por todos os lados, seus olhos eram arregalados e gosmas de ódio pingavam de suas bocas humanas e felinas. Virei meu rosto para outra direção, mudei a paisagem, essa sim, se abria para mim, para nós. Deixei que Bud segurasse minha mão e nós dois olhamos para frente agora. Liberei meus pensamentos, estavam livres, eles dançavam num baile antigo, aonde as ondas do mar que navegava  naquele momento, ainda pequenas e sem forma definida, simplesmente rodopiavam de lá pra cá. Adorava essa palavra “rodopiar”, ela me fazia lembrar aula de dança de quando eu executava tantos desses até cair exausta no chão de tacos e de braços abertos. Nada a fixar, nada a sofrer, nada a refletir, apenas ir e ir.

Rumo à Cidade Nova o barco segue com a velocidade dos sonhos de todas aquelas pessoas. A maioria viaja em silêncio, até mesmo as crianças quase não falam. Há um cansaço físico e emocional nos tripulantes, sem alegria, não existe felicidade em ser “coagido” a abandonar seu lugar, suas casas, seus empregos. Não há euforia na incerteza do recomeço e sim uma dúvida que impera agora, a esperança ainda é uma marola. O tempo passa assim, os homens se revezam no leme, as mulheres aninham suas crianças, conversas poucas e baixas começam e terminam de repente… Anoitece e esfria. Uma comoção é instaurada com a chegada da escuridão e sem maiores alardes, todos se dão as mãos e olham para o céu… numa tentativa de pedido de proteção. Alguns abraçados, outros não, adormecem e a troca no comando dura a noite inteira.

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Não sei como consegui, mas adormeci sentada, com a cabeça apoiada no ombro direito de Bud. Apesar do frio e um pouco de náusea, até posso dizer que sonhei. Segurei a mão de uma menina na hora da reza e cheguei a pensar que pudesse ser Nage.  Um desespero passou por todo o meu corpo e foi embora. A lua foi a minha confidente e de todas aquelas pessoas que, acreditando ou não em algo maior, olhasse por nós. E durante sete ou oitos horas treva adentro, os homens do barco comandaram a direção do nosso caminho para a tal Cidade Nova.

A Cidade Nova tinha este nome porque sua idade era de vinte e cinco anos apenas. Ficava ao sul da Cidade Dividida  e tinha fama de ter inúmeros bichos amistosos e uma população muito jovem, ansiosa por mais habitantes. Havia rumores que a população se inspirava nos cães, que eram amistosos e de caráter inabalável. As poucas discussões eram cordiais e a justiça prevalecia. As pessoas que habitavam a pequena cidade seguiam a matilha, aprendiam com eles o espírito de fidelidade, amizade e família. Na Cidade Nova não existia preconceito e quando surgia alguma desavença, logo era resolvida. 

Diário de Ramira

Amanheceu com ondas turbulentas, o mar de um azul marinho escuro, nuvens negras pesadas e o vento soprava forte e barulhento. Eu me agarrei com força em Bud e na ideia do outro começo. Ao contrário do dia anterior, todos conversavam agitados, as crianças choramingavam e os cães uivavam de um modo enlouquecedor. Comecei a pedir para o céu que tudo se acalmasse, mas nada acontecia. Resolvi pegar meu maior lenço e me amarrar no banco do barco. Foi a primeira vez que me sentia como uma folha de papel… Começaram uns solavancos, as minhas pernas voavam pra cima, Bud começou amarrar a todos, não havia coletes salva-vidas e os gritos das mães desesperadas tomaram conta de tudo. Um cão caiu no mar e nada se pode fazer, a menina gritava seu nome aos prantos enquanto era consolada pela irmã maior. O pequeno homem que estava no leme bateu o braço com força e com a dor, desmaiou. O barco ficou sem rumo e ninguém conseguia chegar até o comando da direção. A chuva despencou gelada e torrencial e ao invés de manhã ensolarada, reinou o luto que não era esperado.

A pedra

A pedra respira como gente. A pedra é pontiaguda e só não é confundida com um iceberg porque é negra. A coisa horrenda em forma de baleia monstruosa surgiu no meio do mar como o ápice de uma briga pavorosa entre água e outra coisa. A pedra gigante enquanto coisa, enquanto grito da natureza.  A pedra do pesadelo se levanta rasgando a água, quebrando o vidro, estilhaçando tudo que encontra no caminho e, assim, espicaça, no susto, varre, invade o barco de forma estúpida e repentina.

Diário de Ramira

Acordei com a minha mão que despencou na água e molhou meus dedos. Eu sou Ramira, repetia em voz baixa para mim mesma…precisava me ouvir. Estava quase sem roupa, tinha um lenço grande amarrado na cintura. Flutuava sobre um pedaço de madeira, de mais ou menos um metro e meio de comprimento por setenta centímetros de largura.

Nunca fui boa em medidas nem em matemática, sou zero em números. Meu corpo doía, não fazia ideia daonde vieram esses hematomas da minha perna direita, tinha um ferimento no pescoço… a sensação é esquisita, incômoda , nunca senti nada parecido… parece que dormi uma vida toda em formato de caracol e só hoje, nessa manhã, ou tarde, me desenrolei. Eu sou Ramira,  repetia. É a primeira vez que via meu corpo dessa maneira, procurando algum resquício que me ajudasse a entender, a lembrar o que havia acontecido. Nada na mente. Olhava para os lados, para frente, não via nada boiando perto de mim, nenhum outro pedaço de madeira. Estava calma e sonolenta, anestesiada pelas pancadas, eu achava. Sentia muito sono. Eu sou Ramira. Ra-mi-ra… Não fosse o sol, viraria para o outro lado e dormiria mais dois anos.

Aquela paisagem, se fosse vista de cima de um edifício, seria como uma fotografia abstrata, algo quase surreal. Uma imensidão azul bem clara e um pedaço de madeira no meio, boiando com uma coisa que se move lentamente  em cima. Fotos não se mexiam. Não devia parecer um corpo, mas era, era um corpo-objeto em posição fetal. Um destroço irregular que boiava harmoniosamente sobre a calmaria turquesa. Uma música linda e clássica poderia ter tocado naquele momento único, para acompanhar aquele quadro. A melodia cairia muito bem com a pintura. Mas era realidade. Leveza versus sono versus silêncio.

Continua…

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