Meu amor

Uma blusa no armário, um perfume e a lembrança de dias proibidos, mas felizes

Um cheiro de madeira. Não o frescor do galho que acabou de ser quebrado, mas a doçura da resina que surge sob a casca que se solta do tronco. Também tem tabaco. O fumo adocicado dos charutos e cachimbos. Tem algo mais, escondido, que demoro a identificar. Talvez capim-limão.

No velho cardigã cinza comprado em Buenos Aires, os arabescos em tom mais claro bordados perto da fileira de botões. Tão velho e usado que ele é. A lã conservou todas as notas do perfume desde o último inverno: madeira, tabaco e capim-limão.

Aproximo a blusa do nariz e inspiro mais uma vez. É perfume de homem.

Aquele cheiro atravessou a primavera e o verão, comprometedor e perigoso, no nosso guarda-roupa. Com a chegada das manhãs frias, foi descoberto. Um dia que começava banal foi enriquecido com o medo e o prazer.

É que esse perfume é dele.

José não usa perfume, até desodorante resiste em usar. Então esse cheiro é dele, ah é dele! Grudou-se no meu velho cardigã quando nos abraçamos. Este cheiro que veio daquela pele que desejo ficou guardado todo esse tempo em que eu sofria com as saudades… Se soubesse, teria ido ali diariamente, mergulhar o rosto na lã macia e inspirar fundo.

Os cheiros! Não os vemos, não os tocamos e ainda assim eles trazem de volta uma presença inteira, trazem dias, trazem sensações, trazem o amor.

Sinto saudades dele. O próximo encontro não tem data. Preciso de justificativa para viajar. Ele também andou hesitando. Incomodado, talvez, com a situação? Uma hora ia acontecer – previ isso. De novo aproximo a blusa do rosto, desta vez como se fosse um ombro em que vou me apoiar para chorar. Quero chorar. Tenho que tomar uma decisão.

A única decisão que tenho coragem de tomar é lavar a blusa de lã, por mais que isso me doa. Amantes não podem se permitir certos prazeres, como manter o cheiro do desejo guardado no armário como efêmero troféu.

Sobre o/a autor/a

7 comentários em “Meu amor”

  1. Márcia Schroeder

    Muito bom e real, sentia esse perfume, amor, ao abrir o armário do meu pai, lá estava sua presença e depois de quase 40 anos, se me concentrar sinto o perfume do amor paterno. Marleth é perfeita em explicitar sentimentos.

  2. “Meu amor” de Marleth Silva é uma história tão bem escrita e detalhada que eu pude me ver na personagem, nas sensações e emoções por ela vividas. Parabéns!!!!

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