A última corrida

Era madrugada quando o velho entrou no carro. Tinha alguma coisa errada

O velhinho abriu a porta muito devagar. Ficou lá, a mão no trinco, num sai-não-sai que eu observei de dentro do carro. Não pensei que fosse o meu passageiro. Quem pediu o carro foi uma mulher. Então, quando ele deu uns passinhos pra fora e parou na frente do prédio, continuei olhando pra porta pra ver se ela aparecia. Ele olhava pra um lado, pra outro. Aí ouvi a mulher gritar. Sabe aqueles predinhos, aqueles de conjunto? Eram vários, sei lá, uns seis. Ela apareceu na janela do segundo andar. Vai lá, vai! Achei que estava apontando pra mim. Desembarquei e gritei pra ela “foi a senhora que pediu o carro?” Ela respondeu “é pra ele” e indicou o velho com um movimento de cabeça. O homem parecia não entender nada.

Enquanto eu o ajudava a embarcar, ela virou as costas e entrou. Senti que tinha coisa ruim ali. Custava acompanhar o homem? Bonita até, a mulher. Será que ele é cliente? Vejo cada coisa…

Saímos e o homem que até então estava mudo me disse que não sabia o endereço. “Sem problema, já tenho aqui”, respondi. Ele grunhiu algumas palavras. Palavras? Difícil entender o que dizia. Falava rápido e pronunciava mal. Pra meu azar, queria conversar. De cara contou que não é daqui. Cidade pequena. “Zona rural?” Não, mas já morou no sítio, sim. Que veio ver os filhos. Que passa pela casa de um e de outro. Queria dormir no apartamento da filha todas as noites, mas ela disse que tem que sair cedo pra trabalhar. Trabalha até domingo. Tem uma filharada, tudo homem feito, mas problemático.

“A filha é a que apareceu na janela?”

Aquela mesma, a única filha. O resto, tudo macho. E riu – como se tivesse dito algo muito espirituoso.

O filho, esse que ele vai ver agora, vende ferro velho. Penso que é uma hora estranha pra visitar alguém. Quase duas da madrugada. Vai ser meu último cliente. De noite dá muita gente estranha. Sempre me arrependo. Me arrependo até de estar fazendo esse bico enquanto não acho um emprego de verdade. O velho não tem cara de perigoso, mas e se o filho for bandido?

“O filho tá esperando o senhor?”

A minha pergunta provocou um curto-circuito na cabeça do homem. Gaguejou. Resmungou. Balbuciou. Achei que tinha dito alguma coisa que não entendi. Mas parece que não. Só não sabia mesmo o que responder. Disse “acho que vou ter que acordar ele”. Ou disse coisa parecida. Não era esse o plano, não. O plano era dormir na filha. Avisou antes de viajar, avisou de novo ontem, avisou hoje cedo. A filha sempre ocupada, ele quase não veio. Mas a casa dela é melhor pra passar a noite, mais quieta.

“Ela mora sozinha?”

Mora sozinha, sim, separou do marido. Segundo marido. Só vive pra trabalhar. Faxineira. A casa dela é um brinco. Ela tem mania de limpar a casa. Enquanto ele ficou lá, umas horas só, ela não parou de limpar. Digo pra ela descansar, que tá magra, com ar cansado. Ela tem cara de brava, até assusta a netinha. Não sei como a menina gosta tanto dela, se tá sempre de cara amarrada.

Agora ele tá falando de uma menina? “A menina é neta do senhor?”

Bisneta. “Não parece, mas eu já sou bisavô. Neta da minha filha. Uma florzinha. Tá aí com ela hoje, passando a noite. Por isso que a minha filha não queria que eu posasse aqui, porque tem a neta.”

Tive até que rir. Ele acha que não parece bisavô. Ele parece bisavô do Matusalém! Ri, mas claro que o velhote pensou que eu ria do que ele disse. Riu também, mas aí começou de novo a balbuciar, a fazer uns sons que, sei lá, achei que tava se afogando. Fiquei na minha.

“O senhor disse alguma coisa?”

Ele pediu desculpas, isso eu entendi. Disse que choro é feio. Então ele estava chorando! Não entendo o velho nem quando fala nem quando chora. Vou dizer o quê?

“Imagina.”

Ele se mexe muito no banco. Está pegando um lenço no bolso da calça. Parece secar os olhos, mas observo e não vejo lágrimas. Está é mais fanho, precisa assoar o nariz. Tenho curiosidade, mas também preguiça de perguntar qual o problema. Cada passageiro é um drama. Sabe que é melhor nem saber? Eu não pergunto, juro que não pergunto. Pra esse velhote eu não perguntei, foi ele que começou a falar de novo. A netinha, tão boazinha, bonitinha também. Ficou contente de ver o avô. Ele ficou triste de não ter um presentinho pra ela. Criança gosta de ganhar presentinho, né? Procurou nos bolsos, na mala. Achou as pastilhas. Coisa de quem já fumou, né? Deu uma pastilha pra ela. A menina tava de camisola, sentada no sofá vendo tevê. Perto dele, não do lado, mas perto. Ele não tava prestando atenção na tevê. Só tava ali, fazendo a digestão depois da janta. A menina aceitou a pastilha. Colocou na boquinha, boquinha de boneca que ela tem. Fez cara de quem não gostou, mas continuou chupando. A filha, lavando a louça, já quis saber o que eu tinha dado pra criança. Isso é remédio, pai. Não pode. A menina teve que ir no banheiro jogar fora. Aí a gente foi dormir.

Dormir, ele disse. Então ele ia dormir lá. Agora tá aqui. Foi despejado. Deve ter aprontado alguma. Não vou perguntar. Melhor não saber.

O velho dormiu logo, foi o que ele me disse. Mas dorme e acorda a noite inteira. Em casa acha que é porque fica muito sozinho. Na casa dos filhos, estranha a cama. Nunca dorme direito, então. Sei. Então ouviu passos e se levantou também. Queria conversar um pouco pra noite passar mais rápido. Cada ideia! A menininha tava fazendo xixi, porta aberta. Ele foi pra sala e se sentou. No escuro mesmo, pra não incomodar. Só a réstia de luz que vinha do banheiro. Quando ela saiu, ele chamou. Vem cá, vem. Conversar com o vovô. A menininha apareceu. Tem um cabelão cacheado que parece uma nuvem de tempestade em torno da cabeça. Cabelo preto, só ela, que a gente é tudo polaco.

As duas da manhã, depois de trabalhar 12 horas, meu raciocínio fica lento. Mas naquele momento… sabe quando você lembra de um compromisso importante que tinha esquecido? Dá até um frio na espinha? Foi isso que senti. Porque percebi que aquela história não ia acabar bem. Já disse que nunca quis saber de nada, não perguntei nada. Ele falou porque quis. Gente assim sempre fala, né? No fundo têm orgulho, acho.

A menina foi chegando perto dele, mas parou encostada no braço do sofá. Ficou olhando pra ele com aqueles olhões. E abria a boquinha. O velho disse que ficou confuso, a menininha era quem mesmo? Olhou pras perninhas dela, magrelinhas, e lembrou. Era a filha. A filha dele. Esticou o braço e pegou o bracinho da menina. Puxou ela pra perto. Ela veio meio arrastada. Senta aqui, ele disse, e ela não obedeceu. Ele pegou então aquele corpinho pequeno e botou sentado na perna dele. E ele batia a mão na coxa esquerda pra me mostrar onde a menina tinha sentado. Ficou olhando bem pra ela, porque achou estranho. A filha com aquele cabelão? Mas a cabeça dizia que era a filha, a filha que ele punha no colo pra brincar. Apertou o bracinho, depois as perninhas, uma e outra. Apertou bem forte e depois soltou pra ver a marca dos dedos naquela coxa branca. Sempre gostou de fazer isso. Levantou um pouco a camisola. A menina empurrou a mão dele e jogou o corpo pra trás. Menina sempre enjoada. Sempre foi. Por isso que apanhava. Ela disse alguma coisa, ele não lembra o quê. Queria apertar mais as mãos contra as coxas dela, tava escuro e ele não tinha conseguido ver as marcas. Ela se bateu e choramingou. Enjoada. Ele é pai, ela é criança e sabe que tem que ficar quieta. Apertou com força a coxa da menina e se curvou para ver a marca. Dessa vez viu. O contorno dos dedos em vermelho e a pele bem branca no lugar onde os dedos apertaram. Parece que aquilo animou ele. Apertou o peito. Sabe que com a minha mão eu cubro os dois peitinhos dela? Depois disso só lembra dos gritos da filha, da filha grande e da filha pequena. A pequena sumiu, parece que trancada no quarto. A grande xingou muito, velho sem vergonha, viciado em sujeira, como pode? De novo, de novo, na minha casa. A filha gritava essas coisas e outras que ele não entendia. A filha disse pra ele ir embora, que por isso nunca quis ele por perto, porque não tinha esquecido, que não ia perdoar nunca, que não queria que a neta… Ela não, seu porco! Do que ela tava falando? Ela nunca reclamou quando era criança… Ele lembra bem que brincaram até ela ir embora de casa. Quantos anos tinha mesmo? Uns 12, ele acha.

Agora ela diz – e dessa vez ele virou bem pra mim e abriu muitos os olhos – que é por isso que não me quer por perto. Eu desconfiava que ela não me queria aqui. Não sou bobo. Mas é por isso? Uma coisa que aconteceu quando ela era criança, faz mais de 30 anos? Ela, minha única filha? Ela tá louca.

Parei o carro.

“Desce.”

Ele olhou em volta. “Chegamo?”

Não respondi. Ele começou a mexer no bolso.

“A corrida tá paga. Sua filha já pagou.”

Ele sorriu animado. É mesmo, eu tinha esquecido. Abriu a porta, mas se virou pra mim. Obrigado, moça. Falou alguma coisa que não entendi. Aquela dicção de merda. Desembarcou.

Se eu o deixei muito longe da casa do filho? Duas ou três quadras. Se ele não reconheceu o lugar e foi na direção errada, sinto muito. Acharam o velho, não acharam? Levou vários dias? Até a filha se preocupou? Veja como são as filhas. Não aprendem nunca.

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