Cigarras fazem um som-antídoto para o chororô do rock

Com trabalho em vinil e em streaming, banda curitibana prova ser dona de um punk rock afiado, sem nostalgia nem saudosismo

Dizem que o rock and roll, nas últimas décadas, se converteu em um gênero musical deslocado dos anseios contemporâneos. Que perdeu grande parte de sua influência e relevância social, transferidas para estilos como o rap e o funk.

Os roqueiros parecem ter internalizado, por efeito de uma implacável crítica moral, uma postura de correção que, para dizer o mínimo, parece incongruente com a própria proposta estética do gênero. É como se dissessem: “Acalme-se, nós mudamos, estamos muito mais higiênicos, abandonamos os vícios e já sabemos comer à mesa”. Tudo muito lindo.

Ocorre que há um problema insolúvel dentro de tamanha perfeição.

Para renovar pontes com a juventude – faixa etária para a qual, na segunda metade do século 20, o rock falou sempre mais de perto –, é preciso canalizar de algum modo não apenas as ideias de uma época, mas também a vontade de potência e os desejos de contestação tipicamente juvenis, o que não se alcança, evidentemente, por meio de uma balada no ukulelê, com refrão melancólico e letra abordando a importância da empatia ou do respeito aos mais velhos.

As Cigarras

O som das Cigarras – quarteto curitibano que vem se apresentando no underground desde 2017 e é formado por Babi Age (bateria), Maria Paraguaya (voz e guitarra), Rubia Oliveira (baixo) e Tais D’Albuquerque (guitarra) – funciona como um vigoroso antídoto a este rock decaído, que trocou os impulsos vitais do estilo por uma gramática de autoindulgência e culpa disfarçada, entregando aos órfãos da sujeira e da irreverência do rock and roll uma boleta na língua e uma bota furada embicada nos glúteos.

Fazendo um punk rock afiado, desde o nome do grupo, as garotas acumulam acertos que fazem qualquer verdadeiro roqueiro se sentir – depois de tanto chororô acompanhado por guitarras limpas e silenciosas – vingado por seu poderoso universo lírico.

Tudo isso, porém, sem qualquer apelo saudosista ou nostálgico (no pior sentido): não se trata de recriar um som datado, mas de recuperar a força dos expoentes do gênero para, vasculhando a sua terra arrasada, ver o que nela sobrou – o que somente essa linguagem musical pode e tem ainda a nos dizer. E elas o fazem aos berros, em alto e bom som.

O ano de 2020, para além da peste, marca também o lançamento do primeiro registro físico das Cigarras: o EP homônimo, prensado em vinil de sete polegadas pela Zoom Discos. Se você não é do tipo que ostenta na sala de estar uma vitrola, fique tranquilo. O som das Cigarras está disponível também nas plataformas de streaming e no YouTube.

O disco

O lado A da bolachinha abre com “Horizontal”, um punk/surf que já estava disponível na web em formato ao vivo, num videoclipe da banda gravado no Studio Tenda. Porém, é no estúdio de gravação que se percebe mais as influências e texturas que elas procuram para o seu som. Há uma sonoridade garageira, analógica, que dá força ao rock das Cigarras. Os backing vocals em coro reforçam a energia punk do grupo. Com pegada de hit, “Horizontal” se destaca também pela letra, que transita do francês ao português, passando pelo italiano, com o frescor de um romance adolescente.

“Bicho morto”, por sua vez, a segunda faixa do lado A, é mais cadenciada e tem uma atmosfera pesada, de mau agouro ou prenúncio. “Tem bicho morto por aí”, repete Paraguaya à exaustão. Musicalmente, continua a inspiração punk, mas o refrão melódico da canção também evoca muito da sonoridade do rock nacional dos anos oitenta.

Virando de lado, encontramos a porção mais suja e pé-na-porta do disco. “Sexy Cola”, a primeira faixa do lado B, é um rock and roll mais clássico, com grande riff de guitarra e letra que confirma uma das grandes qualidades da banda: sua lírica jovem, irreverente e saborosa, com referências de uma urbanidade suja, que vão do chá de fita K7 à sacola de cola no rolê.

“Fritando na Trajano” é um punk direto, com coro de vozes no refrão e senso melódico que evoca os melhores momentos do Misfits. Também por sua letra, trata-se da canção mais punk do registro, reunindo tretas, boletas e vidraças quebradas. Junto da próxima e derradeira faixa, a dobradinha final é o ponto alto do EP. Roqueiro que é roqueiro, aqui, entra na roda.

Por fim, com pouco mais de um minuto, “Xurumen” é a canção mais pesada de todo o registro. Esbanjando velocidade e agressividade, deixa seu ouvinte na fissura por mais e mais desse som. Do achado de sabor concretista em seu título – que cria um anti-herói de esgoto, o homem chorume – até o último verso da letra, “Xurumen” é uma pérola punk: “Pra mim teu fedor é perfume”, “Pra mim teu amor é insalubre”, “Joguei calcinha pro Wando/Nós dois no esgoto nadando”, são algumas das sacadas da composição. Nada menos que imperdível.

Supergrupo

Como uma espécie de supergrupo curitibano (as integrantes participam de diversas outras bandas importantes da capital), as Cigarras são uma lufada de ar muito bem-vinda à cena contemporânea do rock. Sua energia e capacidade de realização são evidentes desde esse excelente primeiro EP, gerando grande expectativa para os próximos passos da banda.

Que as Cigarras renovem e aprofundem o baque desta primeira pancada.

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