Jornalismo é, por definição, investigativo

Algumas lições do caso João de Deus sobre como deve funcionar, na prática, o trabalho de um jornalista

Jornalismo tem a ver com contar histórias. Mas, diferente da literatura, da tradição de cultura oral e de outras formas de relato, o jornalismo tem em sua técnica algumas prerrogativas, principalmente a apuração e a checagem. Porque as histórias que o jornalismo conta não têm a finalidade de encantar ou entreter, e sim de informar.

E por ser informação, a história exige precisão. Não dá para dizer que a princesa é alta. É obrigatório que se informe que ela tem 1,78 metro e se indique de onde veio esse dado.

Boas histórias, porém, nos atraem. Em mídias essencialmente visuais, como a internet e a televisão, boas histórias com boas imagens valem ouro. E, às vezes, fazem jornalistas colocarem a obrigação de apurar e checar em segundo plano.

“Mas nem tudo é jornalismo investigativo”, alguém pode alegar. Bem, jornalismo investigativo é redundância, porque todo jornalismo tem obrigação de investigar. Até mesmo a matéria bonitinha de adoção de cachorros ou a história da noiva do palhaço que, no fim, não era verdade.

É o que se percebe no documentário “Em nome de Deus”, da Globoplay, que usa inúmeras gravações de arquivo do médium João de Deus em programas jornalísticos. Vemos ele dando entrevista, realizando “cirurgias espirituais”, confirmando sua ligação especial com o divino e ganhando divulgação nacional e internacional para seus “atendimentos espirituais”.

A série é uma análise profunda do líder espiritual e da trilha de crimes e violência que ele deixou atrás de si, no interior de Goiás, enquanto ganhava projeção mundial como curandeiro. Mostra como ele era temido, considerado poderoso e, com isso, atuava com a certeza da impunidade.

A uma determinada altura, uma vítima fez aquilo que todos dizem para as vítimas fazerem: ao deixar a sala em que foi estuprada pelo médium, e sair do estado de choque, foi à delegacia da cidade registrar um boletim de ocorrência. Foi desencorajada pela própria delegada.

Outra vítima, uma menina que, acompanhada do pai, foi abusada por João de Deus, foi mais longe. Denunciou e levou o caso para a Justiça, só para ver a juíza decidir que, como ela não gritou na hora, o abuso ocorreu, mas não foi crime.

Bom demais para ser verdade

Mas de onde vinha tanto poder? As imagens de arquivo são uma boa pista. Em busca de uma boa história, jornalistas e produtores de programas de televisão peregrinam para locais como Abadiânia, em Goiás, onde o médium comandava a Casa Dom Inácio de Loyola.

Era uma história boa demais para deixar passar. Um homem simples alegava curar pessoas. E mais: não cobrava nada por isso. Relatos de gratidão surgiam espontaneamente. De branco, circulando pela propriedade, pessoas desesperadas entravam num transe coletivo de fé e esperança.

O inusitado da situação, o tema nevrálgico para o público (saúde, doença), as imagens perfeitas para a televisão (o mar de pessoas de branco, as mãos para cima em oração). Era bom demais para deixar passar.

Só que não era verdade. E é isso que o documentário faz: desmonta uma a uma as histórias de João de Deus até que não sobra mais nenhuma.

Apuração e checagem

Mas mesmo cheio de jornalistas circulando por lá, ninguém perguntou, questionou, ou mesmo citou nada que não fosse a versão idílica do “homem de Deus que cura por amor e fé”. Até a investigação que revelou centenas de casos de abuso sexual, realizada pela equipe do Programa do Bial, da Globo.

E os milagres? No documentário, e em inúmeros artigos da época da prisão do médium, houve quem questionasse se a prisão não tiraria de milhares de pessoas a chance de serem curadas. Mas curou mesmo? Quantas dessas pessoas curadas tem os milagres realmente documentados? Atestados?

Uma das histórias mais marcantes do documentário é de uma brasileira com câncer que morre no hospital, em Goiás, depois de ficar em Abadiânia firme na fé de que seria salva. Tão firme que se recusou a voltar para os Estados Unidos com a esposa, que precisava de uma cirurgia.

Existe uma linha muito tênue entre jornalismo e entretenimento. Programas como o “Fantástico”, da própria Globo, cruzam de um lado para o outro com uma facilidade ímpar. Mas para o público comum falta sofisticação para entender onde o jornalismo acaba e o entretenimento começa.

Seria muito fácil culpar o público por não entender que certas reportagens tem de tudo, menos apuração, checagem, itens fundamentais para qualquer trabalho jornalístico. Mas a culpa não é do público. É do jornalismo que se deixa seduzir pela audiência, pelas histórias perfeitas e abre mão gratuitamente de seus fundamentos.

Claro que o desespero de quem está doente não deveria ser entretenimento. Mas vira na mão de quem quer boas imagens e uma história bonitinha. Só que daí não pega bem questionar: “Mas não eram gratuitos os atendimentos?”, “Quem fica com os R$ 100 de cada ‘cápsula energizada’ vendida?”, “O que tem nelas, afinal?”.

Se a casa é um espaço de caridade, cadê a prestação de contas?

As perguntas são muitas. Mais que isso: não eram difíceis de serem elaboradas. Só era necessário ter a vontade de romper o encantamento e dar vazão aos necessários questionamentos.

Era necessário confrontar as informações com fatos. Confirmar dados fornecidos pelo médium e seus seguidores. Nada de outro mundo. Só jornalismo.

Perguntar ofende

Não há nada de simples em apurar informações. Especialmente quando se lida com pessoas que estão no poder, a pergunta é sempre ponto de conflito com o jornalista.

Hoje vemos o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) evitar e tentar ridicularizar perguntas de jornalistas, usando uma claque de apoiadores para agredir profissionais da imprensa. Mas não foi ele que inventou isso (muito embora tenha aprimorado de forma ímpar).

Em 2004, o então governador do Paraná, Roberto Requião (PMDB), torceu o dedo de um repórter após o profissional fazer uma pergunta. Outro governador, Beto Richa (PSDB), costumava andar com um grupo de assessores que participavam das coletivas e faziam “perguntas” sob medida, impedindo os colegas de fazer outros questionamentos mais duros.

Apesar de uma pergunta, por si só, não ser uma reportagem, os entrevistados agem como se a partir dela pudessem deduzir uma suposta “agenda oculta” do repórter. E são rápidos, então, em “denunciar” e constranger o jornalista.

Para o jornalista, no entanto, até a reação violenta entra no cálculo da elaboração da pergunta. O que um bom profissional da imprensa quer é uma resposta que traga informações, conteúdo.

Documentação

O público em geral não sabe, mas dificilmente um bom jornalista pergunta algo sem ter já apurado informações sobre o tema. Esse bom profissional não depende da resposta da pergunta para noticiar. Ele apoia a história que irá contar em sólida documentação, que é como chamamos a prática de encontrar registros e corroborar as informações.

Documentar é encontrar mais de uma testemunha de um mesmo fato, para confirmar a versão da primeira com outra pessoa, de forma independente. É confirmar em documentos e registros os detalhes da história: como gravações de câmeras de segurança, recibos e notas fiscais, registros judiciais etc.

Nesse trabalho, o jornalista é como um promotor montando uma acusação. Ao mesmo tempo, é advogado de defesa, questionando e tentando desmontar tudo.

O que sobra é a melhor versão da verdade que se pode obter.

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