Sessenta anos depois da publicação de “Quarto de despejo”, o Brasil finalmente deve conhecer Carolina Maria de Jesus como escritora. A Companhia das Letras anunciou a publicação de obras inéditas da autora, editadas por um grupo de mulheres que se dedicam a pesquisar os escritos de Carolina.
Em 1960, “Quanto de despejo” lançou Carolina Maria de Jesus no mercado literário, e alcançou fama mundial, mas também limitou a escritora ao subtítulo de sua obra: “diário de uma favelada”.
De fato, a mineira Carolina viveu na favela do Canindé (em São Paulo) por 12 anos, e era lá que vivia quando a compilação de seus diários veio a público. “O público estava pronto para receber o diário de uma favelada”, diz a pesquisadora e professora da rede estadual Vanessa Poteriko. “Mas a Carolina não era apenas uma favelada que sabia escrever. Desde 1940 ela já tinha publicado poesia no jornal, ela sempre estava se mostrando como escritora”.
O problema, segundo Poteriko, não foi o sucesso mas a forma pelo qual ele veio. “Foram feitos cortes na obra dela, sob a visão masculina e branca da época. Podaram muito da Carolina: aquela mulher, guerreira, que quer aprender a dirigir, comprar um carro, que quer ser dona da sua vida. Isso tudo foi cortado, porque não podia se mostrar, em 1960, uma mulher desse jeito – ainda mais, negra”, diz.
Carolina Maria de Jesus
A maior parte das obras de Carolina, na verdade, seguem sem publicação: seus manuscritos estão espalhados pelo Brasil. No portfólio da escritora há poesias, peças de teatro, e romance. A pesquisadora Raffaella Fernandez, que também integra o corpo editorial responsável pelas obras na Companhia das Letras, chegou a publicar livros de Carolina por editoras independentes: “Meu sonho é escrever”, com contos inéditos; “Clíris: poemas recolhidos”, de 2019; e “Onde estaes Felicidade?”, que além dos manuscritos da autora, traz ensaios sobre sua obra.
Carolina, em 1963, publicou do próprio bolso o romance “Pedaços da Fome”. As obras, no entanto, não venderam como “Quarto de despejo”. Uma matéria do Jornal do Brasil, de agosto de 1960, aponta que a escritora vendeu, apenas no dia do lançamento do diário, 600 exemplares.
A proposta do corpo editorial, do qual também participa a escritora Conceição Evaristo, é mudar esse cenário que se construiu em cima de estigmas: da catadora de papel, moradora da favela, que escrevia.
Para a pesquisadora Vanessa Poteriko, Carolina Maria de Jesus não é apenas uma escritora de diários, ela é uma das intérpretes do Brasil. “É uma intelectual do Brasil, e ela revolucionou: quando a conhecemos começamos a nos perguntar o que é literatura, quem pode fazer literatura no país”, afirma Poteriko.
A Companhia das Letras não trabalhará com “Quarto de despejo”, nem “Diário de Bitita”. Porém, trará títulos novos, com memórias, romances, poesias, música, teatro e narrativas curtas. A base do trabalho serão os manuscritos originais de Carolina, espalhados pelo Brasil. A primeira publicação, ainda sem data de lançamento, será “Casa de alvenaria”, título de 1961.