Editora 34 publica contos de Bulgákov sobre a vida de médico

Em tempos de pandemia, relatos autobiográficos do escritor russo de “O mestre e a Margarida” se mostram extremamente atuais

Para a sorte dos leitores, o escritor russo Mikhail Bulgákov (1891-1940) abandonou a medicina, depois de alguns anos de exercício da profissão, para se dedicar à literatura, a qual, porém, não lhe garantiu sustento nem fama. Muito pelo contrário, Bulgákov morreu sem poder publicar, inclusive, sua obra-prima, o romance “O mestre e a Margarida”.

Aliás, muitos de seus escritos só foram publicados postumamente. Desde meados da década de 1920, sua obra deixou de circular na Rússia, pois foi considerada “antissoviética e neoburguesa pelos críticos da época stalinista”, como afirma o tradutor Homero Freitas Andrade em “O diabo solto em Moscou”, de 2002, livro que inclui uma extensa biografia do escritor, além de traduções de alguns de seus contos autobiográficos, como “A morfina” e “Relatos de um médico jovem”. 

Nesses contos, Dr. Bomgard, alter ego de Bulgákov, discorre sobre seus primeiros anos de medicina, de 1916 a 1917, em uma cidadezinha da zona rural da Rússia, que atravessava um período conturbado: Primeira Guerra Mundial, Revolução de 1917 e Guerra Civil entre os bolcheviques e as milícias nacionalistas da Ucrânia comandadas por Semion Petliúra. Não sem razão, Bulgákov se perguntava: “Por que não nasci há cem anos?!”.

Entre 1925 e 1926, esses relatos sobre a sua profissão foram publicados separadamente na revista “O trabalhador da Medicina”. Mas foi somente em 1960 que alguns deles foram reunidos e publicados em livro na Rússia. Os mais controversos, como “Morfina” e “Exantema estrelado”, contudo, não foram incluídos na edição. Neles, o escritor descreve a dependência por morfina de um jovem médico atuando sem boas condições de trabalho num hospital do interior, a epidemia de sífilis, entre outras doenças venéreas, nas regiões rurais, e o contato com a miséria e a “ignorância em que viviam as populações locais”, como lembra Freitas de Andrade.

“Anotações de um jovem médico e outras narrativas”

A Editora 34 acaba de republicar, em tradução de Érika Batista, esses relatos de Bulgákov, em “Anotações de um jovem médico e outras narrativas”. A novidade da edição, além dos paratextos, é a inclusão do conto inédito em português “Eu matei”, talvez o mais contundente deles, pois discute a morte dos pacientes nas mãos dos médicos. Lembra o Dr. Bomgard, protagonista de mais essa história, que “Ninguém passa a faca em ninguém, e se acabamos matando um doente que está nas nossas mãos, é por acidente. Chega a ser engraçado! O assassinato não é do feitio da nossa profissão”.

Mas outro médico narra sua experiência ao ser capturado pelo exército sanguinolento de Petliúra e obrigado a atuar no Primeiro Regimento de Cavalaria do movimento nacionalista ucraniano. No acampamento, testemunhou todos os tipos de atrocidades: “[…] a cada cinco minutos, sob o assoalho embaixo de mim irrompia um ganido. Eu não sabia exatamente o que estava acontecendo. Espancavam alguém lá, com uma vareta de limpar espingarda”.  

Ciente das torturas impostas aos prisioneiros, o médico foi chamado para salvar a vida do líder do regimento. Nesse momento, testemunhou uma nova monstruosidade e “tudo ficou turvo”, pois já não sabia se deveria ou não salvar um genocida e torturador: “ali começavam os mais estranhos e surpreendentes acontecimentos da minha malfadada vida de médico”.     

Em tempos de pandemia, hospitais lotados e estresse constante, essas narrativas médicas se mostram extremamente atuais.

Contos

“Anotações de um jovem médico e outras narrativas”, de Mikhail Bulgákov. Editora 34, 216 páginas, R$ 54.

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