Bandidos e policiais no padrão nórdico

Série mais elogiada do ano, Mare of Easttown mostra drama de policiais em sete episódios

A série mais elogiada deste ano, até aqui, é “Mare of Easttown”, produção americana da HBO estrelada por Kate Winslet. Os elogios são merecidos: o trabalho dos atores é excelente e o roteiro, bem costurado. Ao longo dos sete episódios, a trama consegue manter o interesse em torno da investigação e, principalmente, alimenta a torcida pela policial Mare Sheehan, que leva uma vida desastrosa.

É exatamente o perfil da detetive que revela que “Mare of Easttown” se insere no padrão das séries que proliferam nos serviços de streaming sob a influência dos romances policiais nórdicos. Dentro deste padrão, o protagonista é sempre uma pessoa discreta e neurótica, um policial genial e obcecado pelo trabalho cuja vida pessoal é um desastre e a carreira está por um fio. É de regra que ele ou ela seja enviado em algum dos episódios ao terapeuta e resista ao tratamento. É assim na pioneira “Wallander” (com Kenneth Branagh), na inglesa “River” (estrelada por Stellan Skarsgård), na galesa “Hinterland” (falada em galês e estrelada por Richard Harrington), na islandesa “Trapped” (com meu favorito, Ólafur Darri Ólafsson) e na finlandesa “Deadwind” (protagonizada pela atriz Pihla Viitala), para citar algumas que me ocorrem agora.

Em todos estes casos, o policial enfrenta a desconfiança tanto da família quanto da sociedade e carrega algum escorregão no passado que o coloca sob permanente suspeição. O herói ou a heroína é um investigador fantástico e mesmo assim ninguém lhe dá colher de chá. Nós, que moramos em um país onde 70% dos homicídios não são punidos, morremos de inveja daquelas comunidades onde nenhum assassino sai ileso. E nos perguntamos: se eles são tão dedicados, por que todo mundo é tão duro com os investigadores?

Minha hipótese é que a representação do policial nessas séries reflete uma mentalidade que identifica as forças de segurança com a repressão, em primeiro lugar, e só depois com a segurança. O policial é sempre um agente repressor e por isso não se pode mostrar simpatia por ele. Ele não precisa ser um Dirty Harry para ser olhado com desconfiança. Aliás, se ele disparar sua arma, terá que dar explicações. Se matar um suspeito, será afastado e investigado. Bem se vê que falamos de uma realidade a anos-luz da brasileira. A comunidade quer identificar e punir o assassino, mas quer com a mesma intensidade manter a polícia sob controle. Como os policiais dessa leva de séries são representados como pessoas sensíveis, fica maior o fardo de trabalhar para uma estrutura identificada com a repressão e a violência. Parecem sempre resignados diante das respostas azedas que recebem ao tomar depoimentos – fico imaginando o que ocorreria aqui se alguém respondesse um policial como vemos os suspeitos fazerem nessas séries…. Enfim, os policiais “nórdicos” sabem como pensam as sociedades em que atuam.

A ideia que permeia essas narrativas policiais que estão na tevê desde o sucesso de “Millenium”, baseada na obra de Stieg Larsson, que estreou há 10 anos, é que quem se submete a fazer o trabalho repressor vai pagar um preço por isso, que é a fragilidade permanente de sua saúde mental e de suas relações. Na história pregressa dos protagonistas, que vai sendo revelada aos poucos ao longo dos episódios, há muita solidão, abandono, mortes de filhos. Uma desgraceira só. Todos esses investigadores deveriam estar afastados para fazer tratamento psiquiátrico, mas como só lhes resta o trabalho e eles são muito bons nisso, insistem e prosseguem mesmo quando o caso parece estar resolvido.

As séries policiais da Escandinávia trouxeram uma variação de temas que só poderia ter saído de lá. Nada de latrocínios ou tráfico de drogas, crimes que dominam as produções brasileiras porque é o que temos em abundância por aqui. Lá no Norte o que há são crimes passionais, perversões sexuais e interesses que ameaçam o meio ambiente. Claro que essa categoria rende dramas mais sutis e com menos violência. Na maioria dos casos, mata-se para manter segredos. Arrisco uma estatística: 98% dos assassinatos investigados por Wallander, River, Sofia Karppi e Mare Sheehan foram cometidos para calar a vítima que sabia demais. Mesmo assim, essas séries demoram para se tornar previsíveis por causa das reviravoltas na trama. Em resumo, elas seguem uma fórmula, mas a fórmula é tão bem executada e tem tantas reviravoltas que a audiência mantém o entusiasmo.

“Mare of Easttown” é uma produção americana que assimilou as características da fórmula nórdica, inclusive o cenário, a cidade pequena. Easttown é fria e chuvosa, mas não chega a dar aos episódios a aparência de filme noir que se vê nas produções europeias. Senti falta apenas da exploração visual da paisagem, que é tão protagonista quanto o investigador em “Wallander”, com seus campos e lugarejos suecos, e em “Hinterland”, onde o verde interminável da costa do País de Gales torna os crimes mais surpreendentes. Em relação às séries policiais americanas, “Mare of Easttown” deixa de fora as perseguições, tiroteios e malas cheias de dólares. Não fazem falta nenhuma.

Se “Mare of Easttown” está sendo mais comentada no Brasil do que as séries europeias disponíveis no streaming, deve ser por causa da presença magnética de Kate Winslet. A Mare que ela interpreta nos faz pensar em uma amiga que trabalha duro e protege a família e que por isso não tem tempo para se cuidar, mas sempre que olhamos para ela vemos que continua sendo uma mulher bonita e boa gente. É possível que este sucesso estimule outras produções semelhantes nos Estados Unidos, que até agora vinha apenas refilmando séries nórdicas (A Ponte, The Killing e a série Millenium), dando uma sobrevida à fórmula, que está próxima de se esgotar.

Serviço

Mare of Easttown. Em exibição na HBO, 7 episódios.

Sobre o/a autor/a

3 comentários em “Bandidos e policiais no padrão nórdico”

  1. Ótima análise… mais algumas características dessas séries: sempre com um filho ou filha que se envolvem com drogas e criam problemas na investigação (somem, são sequestrados, agredidos, etc…); em algum momento o personagem principal será afastados do serviço por alguma atitude mas continuará a investigar por conta; sempre enfrentarão o perigo final sozinhos, sem apoio… mas enfim são ótimas séries estas escandinavas, anos luz de qualidade e enredo das americanas.. e cito mais algumas deste estilo: Broadchurch (Inglaterra), Shetland (Escócia), O Assassino de Valhalla (Islandia), Bron/Broen (sueco-dinamarquesa)… aliás sobre esta diferença de nossa realidade com a deles me lembrei de um comentário numa dessas séries, em que um morador de uma cidade diz: “vamos ficar marcados como uma região violenta e sem lei, já são 2 mortes neste ano!!”.

  2. ótima análise da Marleth. A “desgraceira” que abala os policiais, como referido pela Marleth, é levada ao estado mais agudo em “Case”, série islandesa em que os detetives, afetados por questões pessoais, mais atrapalham que ajudam, e onde o personagem mais próximo do que chamaríamos de herói é um advogado bêbado capaz de fraudar documentos ou invadir computadores para solucionar um caso. Os nórdicos estão dando um banho. só não concordo com a Marleth que o filão esteja se esgotando. tomara que não. Case está na Netflix.

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