A santíssima trindade por trás de “A mão de Deus”

Cineasta Paolo Sorrentino dá graças a Fellini, Scorsese e Maradona no filme inspirado em suas memórias de juventude, em cartaz na Netflix

Ao receber o Oscar de melhor filme estrangeiro por “A Grande Beleza” (2013), Paolo Sorrentino agradeceu a três pessoas: Federico Fellini, Martin Scorsese e Diego Maradona. Sabemos de sua dívida com Fellini (1920–1993). Assim como o velho cineasta italiano, Sorrentino apresenta uma galeria de tipos humanos estranhos e extravagantes, verdadeiras caricaturas do povo italiano de uma época já passada (claro, Sorrentino é menos radical do que Fellini na exploração dessas criaturas).

Sobre Scorsese, Sorrentino já declarou que o diretor americano é uma de suas inspirações. Disse que, muitas vezes, utiliza a câmera da forma como o diretor de “Taxi Driver” o ensinou.

Agora, o Maradona (1960–2020). O jogador influenciou o estilo da obra de Sorrentino de alguma maneira? Não é possível afirmar. Mas o impacto do desempenho esportivo e da personalidade do grande atleta argentino sobre o adolescente Paolo está em algum lugar no espírito dos filmes?

“A mão de Deus”, indicado ao Oscar 2022 de melhor filme estrangeiro e disponível na Netflix, faz homenagem ao futebolista argentino. Começando pelo título, que se refere ao gol de mão feito por Maradona e validado pelos árbitros. (Questionado sobre a manobra, o jogador disse que o gol foi obra do Criador.) Eram as quartas de final da Copa do Mundo de 1986, no México. A Argentina venceu a Inglaterra por 2 a 1. A “mão de Deus” foi crucial.

O novo trabalho de Sorrentino é feito das memórias do diretor. Estamos nos anos 80. Fabietto é um adolescente introspectivo, de 15 ou 16 anos, interpretado pelo novato Filippo Scotti. O jovem vive em Nápoles, sul da Itália, com a família de classe média. Na galeria de personagens, há os pais, o irmão simpático, as tias, os primos, a vizinha que se diz aristocrática. Eles se encontram, conversam, riem, brigam, falam do passado, fazem um modesto passeio de barco no mar azul do Mediterrâneo. Fabietto observa esse ambiente doméstico com muita curiosidade e simpatia. No entanto, na escola, ele é um solitário.

O filme mostra sua paixão pela tia sensual, sua atração pelo cinema (incluindo o fascínio de assistir a uma filmagem), a amizade com um contraventor (um de seus únicos amigos) e muitos outros fatos do cotidiano e das memórias do diretor, incluindo alguns acontecimentos muito pessoais e incompreensíveis para o espectador.

Mas esse último detalhe não importa. O filme seduz e acompanhamos com prazer as descobertas de Fabietto, tendo como cenário a cidade de Nápoles e sua costa mediterrânea, que Sorrentino fotografa com um arrebatamento de cores.

Entre os acontecimentos, temos um fato que fascina nosso herói: a contratação de Diego Maradona pelo clube de futebol Napoli. A alegria de Fabietto não poderia ser maior, e a felicidade pela contratação é capaz, também, de ofuscar situações dramáticas da vida, como assistir a sua mãe tendo um terrível ataque dos nervos ao descobrir que o marido está na casa da amante de longa data.

Mas, em determinado instante, o jovem é surpreendido por uma grande tragédia pessoal. Não há hobbies ou paixões pessoais que suavizem a terrível dor que o assalta de surpresa.

A partir desse fato, Fabietto se dá conta de sua proximidade com a vida adulta e encontra-se num impasse: como será daqui para frente? Ele cuidará de si mesmo? Ele cursará a universidade? Trabalhará no cinema (um sonho que parece distante)? O mundo do jovem desmonta e ele não pode contar com o apoio do irmão, que também está em frangalhos. Todo esse dilema é mostrado com o jovem assoberbado por ideias e possibilidades.

Paolo Sorrentino disse em entrevistas que tudo no filme é verdadeiro, inclusive uma cena em que Fabietto conhece o sexo. O adolescente, precisando dessa experiência essencial para completar sua formação, tem sua primeira relação sexual com uma figura extremamente “felliniana”. Quem conhece Fellini sabe o que isso significa. Sorrentino realiza uma cena notável, que resulta em plena satisfação: a primeira vez de Fabietto não só é bem-sucedida, como o adolescente quer mais. 

Nesse aspecto em particular, que diz respeito à sensualidade, Sorrentino é autêntico e emocionante.

Streaming

“A mão de Deus” está disponível, com exclusividade, na Netflix. Ele é um dos indicados ao Oscar 2022 de melhor filme estrangeiro.

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