“A cultura popular é quase ignorada no Brasil”, diz Ricardo Azevedo

Autor de livros infantis traduzidos em diversos países diz que Brasil precisa aprender sobre si mesmo

O escritor, ilustrador e pesquisador paulista, Ricardo Azevedo (69), bacharel em Comunicação Visual pela Faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado e doutor em Letras pela USP, é um apaixonado pela cultura popular. Autor de várias dezenas de livros para crianças e jovens, publicados no Brasil, Alemanha, Portugal, México, França, Holanda e Costa Rica, muitas de suas obras têm o folclore e a cultura popular brasileira como tema. Ganhou por diversas vezes o prêmio Jabuti, com as obras “Alguma coisa” (FTD), “Maria Gomes” (Scipione), “Dezenove poemas desengonçados” (Ática), “A outra enciclopédia canina” (Companhia das Letrinhas), “Fragosas brenhas do mataréu” (Ática), entre outros prêmios importantes. Palestrante e professor convidado em cursos Arte-Educação e Literatura, é autor de diversos artigos sobre cultura e discurso popular, literatura e poesia, literatura na escola, música popular brasileira e ilustração.

Em Curitiba para ministrar o segundo módulo do curso Literatura: manifestação artística da palavra, promovido pelo Instituto Dom Miguel, Azevedo falou ao Plural sobre o papel da literatura que valoriza a cultura popular, assim como sobre a censura literária e a difusão da literatura e da poesia na escola.

Você é um pesquisador da cultura popular e dos contos populares. Muito se fala das histórias reunidas pelos Irmãos Grimm, por Andersen, Perrault, mas, na sua visão, qual a importância dos contos populares na literatura brasileira?

No lugar de contos, prefiro chamar de formas literárias populares. Porque não são só os contos. Na verdade, você tem as quadras populares, que por vezes são poemas maravilhosos; as adivinhas, que muitas vezes são apresentadas em forma de versos, os ditados, as frases feitas, os trava-línguas…

Então, o que eu acho é o seguinte: cerca de 80% da população brasileira é formada por pessoas pouquíssimo alfabetizadas ou analfabetas mesmo. Mas é preciso lembrar que essas pessoas têm uma cultura oral. Elas por exemplo conhecem essas formas populares. A literatura delas existe, é viva e é transmitida. As pessoas continuam ouvindo histórias e dizendo ditados.

O bacana quando eu vou à escola… primeiro preciso dizer como eu trabalho: escolho um conto, que eu acho interessante, pesquiso várias versões desse conto, e faço a minha versão; que é a leitura que eu faço do conto. De certa forma, nesses casos, ajo com um contador de histórias.

Muito bem… o que acontece… chega na escola… aquela escola que em geral despreza os alunos mais pobres, porque na verdade a escola diz o seguinte: “seu pai é analfabeto, sua mãe é analfabeta, seu avô mais ainda, você e sua família não sabem nada; agora, finalmente, você vai aprender gramática” etc e tal. Quando essa criança ouve um conto popular de algum livro meu, ela me diz: “mas, peraí, a minha avó conta uma história parecida”, ou uma adivinha ou um ditado popular ou uma quadra.

Então, eu acho assim, para um país em que quase 80% da população é semianalfabeta, a cultura popular tem que ser mais respeitada e mais: ela pode ter uma função de amálgama cultural mesmo, de aproximar diferentes pessoas, diferentes classes sociais, diferentes culturas que estão rolando na sociedade, de uma forma incrível. Infelizmente essa cultura, que é da maioria das pessoas, ainda é desprezada, para não dizer ignorada.

Você acha que as formas literárias populares podem ser uma forma de aproximar a criança da literatura?

Falando das crianças em geral, claro que sim, pois são histórias muito boas que costumam divertir e emocionar os leitores, abrindo as portas para outros livros.

No caso das crianças mais pobres, podem ser uma forma de ela se aproximar da literatura e da sociedade, além de ser uma forma de ela se autovalorizar…

Porque, você imagina, você é uma menina, entra numa escola e vai estudar; e a escola diz que você não sabe nada, que você é um nada, que sua família é ignorante e iletrada; você não vai ficar muito motivada, concorda? Você vai ficar bem mal motivada, muito triste e com a autoestima lá embaixo.

É disso que se trata. De integrar as pessoas a uma coisa chamada Brasil. Porque, na verdade, o discurso dessa coisa chamada Brasil, hoje, é o de uma elite pequena, com formação técnica que tem pouca cultura geral, mal conhece a cultura popular e, em geral, a despreza.

Acho que a grande importância de as formas literárias populares serem conhecidas, serem praticadas inclusive na escola… eu falei praticada, veja só, porque o improviso é tipicamente uma manifestação popular que desaparece no modelo mais culto, escolarizado, quando na verdade é um recurso fantástico.

E as crianças pobres, nas suas comunidades, aprendem a improvisar vendo os improvisadores mais velhos, cantadores, sambistas por exemplo. Eles sabem fazer isso como ninguém. Taí uma boa coisa pra se ensinar na escola. O improviso. A escola acha que sabe tudo mas tem muito a aprender com a cultura do povo.

Você e diversos autores de literatura infantil e juvenil experienciaram recentemente situações de censura em escolas – não se deixar que determinados livros circulem em algumas escolas – em função de uma ou outra palavra ou de algum fato narrado na obra. Como você vê hoje essa tendência a uma “assepsia literária”, se é que podemos dizer assim?

Acho que é assepsia – pode ser uma palavra -, ou uma higienização; mas não é da literatura, é da vida. Sinto que infelizmente estamos numa onda moralista, que surgiu sei lá como, que não tem cabimento. Talvez essa higienização da vida tenha a ver com o mundo técnico, utilitário e consumista em que vivemos.

Veja que coisa louca: quando você vai a um médico, porque quer um diagnóstico, você pode até procurar outro médico para comparar os diagnósticos, mas a palavra final é do médico.

Nossos professores têm sido desrespeitados totalmente, hoje. Por pais que se dão ao direito de dizer o que eles devem ensinar e o que não devem ensinar, quando esses pais não são preparados para isso. Então, está tudo muito errado neste caso. Acho que é uma falta de educação generalizada dos próprios pais.

Volta e meia eu penso nisso, penso naquilo, e sempre caio na educação. Na verdade, nós temos uma educação muita fraca no Brasil. Ela teria que ser repensada. E aí a gente precisaria ter alguém, que no momento nós não temos, que tivesse um projeto educacional sério, uma política de Estado suprapartidária para a educação brasileira. Sonho com esse dia.

No evento de que participa aqui em Curitiba, promovido pelo Instituto Dom Miguel, você falará também sobre literatura e poesia. Como incentivar a leitura de poesia e sua melhor inserção nas escolas?

Há várias questões, mas uma coisa é certa: não é possível você falar de literatura e poesia com professores que não são leitores. É isso. Se os professores são leitores, muda tudo. Se são leitores de poesia, eles, com certeza, vão mostrar poemas com os olhos brilhando e os alunos vão querer conhecer mais desses poetas. E com a literatura em geral é a mesma coisa.

A sensação que eu tenho é de que hoje muitos professores não sabem bem o que é a literatura de ficção. Então, fica difícil. Por exemplo, vamos pensar em utopia. Uma utopia do passado às vezes foi realizada hoje, aqui. Eu vim, por exemplo, em meia hora de São Paulo até Curitiba. Se eu falasse isso em 1.500, os caras iam achar que eu estava mentindo ou que eu era um bruxo. Ainda mais se soubessem que eu vim voando (risos).

O que faz com que o que era utopia no passado possa ser transformada em realidade? É a ficção; é a capacidade de ficcionar, de imaginar, de inventar algo que não existe mas poderia existir. Ou que não aconteceu mas poderia ter acontecido. A literatura trabalha exatamente com isso! A literatura fala de personagens que não existem, mas poderiam existir. E se existissem, veja essa questão moral colocada, veja essa questão amorosa, por exemplo, entre dois personagens, veja isso, veja aquilo…

Isso é uma riqueza incalculável que a literatura tem, como nenhuma matéria escolar. As matérias escolares tratam de assuntos concretos e objetivos… elas vêm de fora pra dentro. O aluno fica ali parado recebendo informações, informações…

A literatura é subjetiva e abre um processo de dentro pra fora: a interpretação feita por cada leitor. Se queremos formar alunos criativos e expressivos é preciso que eles entrem em contato com textos subjetivos e criativos. A literatura e a poesia estão aí pra isso…

Diga pelo menos três poetas que todo mundo deveria ler.
Eu sou fã de um poeta que hoje em dia nem falam muito, que é o Murilo Mendes. Tenho sempre por perto um livro dele, assim como de Ferreira Gullar, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade… São muitos.

E poeta mulher?
Gosto muito da Cecília Meireles e da Adélia Prado. Uma poeta jovem muito boa é a Vanessa C. Rodrigues. Inclusive na fala que farei à noite trago poemas das três.

Para mais informações sobre Ricardo Azevedo e sua obra clique aqui.

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