O velho Bach

Por que esse homem que viveu séculos atrás continua sendo um bálsamo para nós?

As estimativas mais recentes dizem que já devem ter passado mais de 100 bilhões de seres humanos por este planeta. Eu acho, com toda honestidade, que nenhum deles deixou uma marca mais preciosa que Johann Sebastian Bach.

Líderes religiosos, políticos, militares. Todos podem ser lembrados nesses termos. Mas seus legados via de regra renderam também animosidade. E muitas vezes muitas mortes.

Eu talvez aceitasse votar no Buda histórico, que realmente me parece ter entendido muita coisa muito a fundo, e deixado um legado que dura já dois mil e quinhentos anos com um saldo positivo bem marcado. Jesus de Nazaré, via Paulo de Tarso, por exemplo, gerou involuntariamente uma herança bem mais conturbada. Como Maomé.

Bach, não.

Primeiro, porque ele se dedicou à música. A mais espiritual das atividades materiais. E por isso mesmo a mais universal, a menos sectária.

E viveu num momento histórico em que nem mesmo o culto do músico gênio tinha se instalado. Viveu sua relação com a arte de maneira menos enviesada. Para todos os efeitos, ele viveu a vida de um “profissional liberal”.

O ser humano mais talentoso de toda a história da música passou seus dias como empregado de patrões e de nobres diversos, dando aula, cumprindo suas tarefas diárias, semanais, criando seus filhos e gerindo uma casa cheia de agregados, casando duas vezes (enviuvou), copiando partituras, ensaiando orquestras, lidando com críticas, testando instrumentos novos, dando opiniões sobre acústica de igrejas.

Morreu, em 1750, provavelmente com a convicção de que era um nome respeitado em toda a Alemanha; talvez meio fora de moda, mas respeitado: porém sem jamais sonhar que seu nome seria central, um quarto de milênio depois, para a vida de um nativo das Américas, descendente de escravos africanos.

*

Eu conheci a música de Bach quanto tinha meus 15 anos de idade. Comecei pelo terceiro dos Concertos de Brandenburgo (um caminho que recomendo a qualquer um). E nunca mais parei. E estou longe de ter ouvido tudo. Durante os 65 anos de sua vida (1685-1750), ele escreveu centenas de horas de música. Centenas.

Muita coisa, inclusive, perdida antes de chegar à era das gravações. Aqueles Concertos de Brandenburgo, por exemplo, um dos pontos altos de toda a arte ocidental, sobreviveram por mera sorte, graças ao encontro de um único manuscrito completo. Um incêndio na hora errada, uma limpeza de baú feita por alguém que não se desse ao trabalho de olhar direito, ou que não soubesse o que estava vendo, e não teríamos acesso a eles.
Muito se fala do esquecimento pelo qual sua obra passou antes de ser “redescoberta” pela geração de Mendelssohn. E embora haja certo exagero em algumas dessas ideias (o público desconhecia Bach, mas os músicos nunca o esqueceram: Mozart, Beethoven, Brahms, Chopin, todos eles tocavam e analisavam sua música), esse período de “limbo” causou mesmo seus prejuízos.

Mas de meados do século 19 até meados do 20 ele retornou ao repertório. E de meados do 20 até aqui ele ficou cada vez mais central. Não sei se é mera sensação (e eu sou suspeito) mas fico com a impressão de que as gravações e as menções ao nome e à obra de Bach aumentaram bastante nos anos da pandemia. Em momentos difíceis para a humanidade, como nos momentos menos fáceis da minha vida, Bach sempre foi remédio.
E que legado é esse.

Ser bálsamo para dezenas e dezenas de gerações, surgidas em cantos do mundo de que você nunca teve notícia em vida.

Johannes Brahms certa vez disse que se fosse capaz de “conceber” uma peça como a Chaconne em Ré menor (não “escrever”; meramente conceber) ele enlouqueceria. Beethoven o chamava de mestre da harmonia. E eu podia ir longe. Paul Simon o considera seu santo protetor. Paul McCartney se inspirou nele para escrever “Penny Lane”. Oscar Peterson escreveu tributos. Hamilton de Holanda é fã consumado. Músicos de todo tipo, de todas as tradições, ficam chocados, deleitados com o que encontram em Bach.

Ele era, sim, um harmonizador brilhante. Foi o maior dos contrapontistas que já conhecemos. Suas fugas são exemplares, e sua escrita coral é até hoje analisada por alunos de composição do mundo todo como modelo de perfeição. Mas no meio disso tudo, da complexidade, da fertilidade e da densidade, do cerebralismo todo de sua obra, às vezes é até fácil esquecer que ele escrevia melodias como um anjo (coisa que Beethoven, por exemplo, era famoso por não saber fazer), e que sua consciência rítmica tinha sofisticações que por vezes tem cheiros muito século 20.

Ele foi, pura e simplesmente, melhor que todos, em praticamente todos os quesitos. E produtivo como poucos.
E tudo isso na arte. Não na guerra, não na doutrina, não na disputa. E na maior de todas as artes (mil desculpas se você não concorda; eu estou em boa companhia, no entanto).

*

Quando morreu, ele deixou ao menos quatro filhos já consagrados como compositores (e é por isso que em algum momento, para diferenciá-lo dos “meninos”, eu comecei a me referir a ele como “o velho Bach”, expressão que ao longo dos anos se transformou apenas em “o velho”, o meu mais velho amigo, Tião Ribeiro), mas acima de tudo deixou para você, e para mim, e para outros bilhões que ainda hão de vir, aquelas centenas de horas de música perfeita, inventiva, animada aqui, introspectiva ali, cerebral muitas vezes, deliciosamente engraçada em outras ocasiões.

Na minha vida, ele é presença constante. Eu ouço Bach há mais de trinta anos. Toco Bach no violão e no piano. Vejo vídeos no YouTube com análises de suas peças. Leio biografias e obras sobre sua música. Ele é meu irmão. Sem exagero.

Eu tenho numa gaveta uma moeda brasileira de 160 réis. Ou seja: meia pataca. Comprei uma vez (e nem foi cara) por causa dessa ideia. De ter algo que me lembrasse o quanto eu valho. Mas a moeda foi cunhada em 1750. E isso faz com que pra mim ela represente também esse elo. Essa marca do tempo que se passou entre o mundo de Bach e o meu. E do quando o mundo em que eu vivo é moldado e abençoado pelo dele. Pela existência de uma pessoa que morreu mais de duzentos anos antes de eu nascer, que trabalhou duro, e muito, e dedicou sua existência inteirinha a lapidar sons, a gerar beleza e surpresa, a produzir um presente.

Está ali ainda.

É só você ir pegar.

Eu podia ficar relacionando dezenas de links para ilustrar tudo isso. Mas vou ficar com um só. De pouco mais de dois minutos (que é para aumentar as chances de você ouvir mesmo, e de a tua vida mudar). György Kurtág, um dos grandes nomes da vanguarda musical do século 20, tocando com sua esposa Marta uma transcrição que ele mesmo fez da abertura de uma cantata. Na minha opinião, um dos vídeos mais lindos de todo o YouTube.
Dois velhos, nitidamente apaixonados: um pelo outro, sim, e também pelo “velho”.

Como eu.

E como você.

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