O país onde arquitetura e cidadania andam de mãos dadas

Na Alemanha, ninguém constrói sem arquiteto; mas os arquitetos também ouvem os cidadãos

A brasileira Maria Helena Paranhos conhece a arquitetura alemã como poucos profissionais brasileiros. Depois de trabalhar por vários anos em projetos no Brasil, Maria Helena se mudou para Berlim, onde vivencia as cidades alemãs por dentro, no dia a dia. Em entrevista ao Plural, ela explica as diferenças entre a Arquitetura alemã e a brasileira.

Quais as diferenças da profissão de arquiteto na Alemanha em relação ao Brasil?

Creio que a diferença maior esta no fato de que na Alemanha a Arquitetura é ensinada (e praticada) como uma matéria diferente do Urbanismo, ou do Planejamento Urbano. Para ambos os cursos há necessidade de se aprofundar na matéria específica, e claro, na prática acabam sendo matérias complementares. Muitos arquitetos podem também realizam mestrado ou doutorado em urbanismo, ja o inverso é difícil de ocorrer. (Um novo bairro a ser criado, ou uma intervenção radical em determinada área, como no momento existe na redefinição de um novo uso para a região de entorno do aeroporto de Tegel, no norte de Berlim, desativado ha cerca de 2 anos.)

Estudantes passam muito tempo nas Universidades, pesquisam e participam também desses projetos através da própria Universidade, que funciona como uma “prestadora de serviços” à sociedade. Regra geral, de acordo com os desafios de um projeto, governos solicitam à Universidade estudos para um projeto especifico, envolvendo não só os arquitetos, mas também urbanistas, sociólogos, engenheiros, etc. Essa visão “holística” de um problema, que exige projetos de áreas complementares, passa a ser uma característica oriunda da proposta da Bauhaus, viva na pratica até os dias atuais. Aprende-se a trabalhar com outros profissionais e é impensável para qualquer pessoa definir um projeto (novo ou de reestruturação de algo já edificado), sem a participação de um arquiteto. Com isso a profissão é bem mais valorizada do que no Brasil, onde estudamos arquitetura e urbanismo junto (ou seja, menos horas/aula especificas para cada matéria) e onde as Universidades são muito pouco exigidas como prestadoras de serviço à sociedade.

Você falou numa valorização maior do profissional. Isso é uma característica alemã ou da Europa como um todo?

Creio que é uma característica europeia, porém muito alemã também. Desde o pós-Guerra que o maior orgulho da sociedade alemã, e de seus sucessivos governos, é o “Bildung” (formação educacional). . O Conhecimento, o Saber, é um valor inestimável para todo e qualquer cidadão, seja ele alemão ou estrangeiro aqui residente, homens ou mulheres, jovens ou adultos. Não importa. 

Na Alemanha você não pode simplesmente abrir um salão de cabeleireiro, ou trabalhar de eletricista, ou torneiro mecânico, padeiro ou qualquer outra profissão se não tiver o tal Ausbildung, diploma que prova que você detém os fundamentos básicos da profissão que escolheu. Há cursos profissionais para toda e qualquer atividade, e na maioria são gratuitos, ou com taxas pequenas, viabilizando maior número de profissionais capazes de poder trabalhar, evitando com isso também maior numero de desempregados (hoje em torno de 4,5%).

Com isso, claro que o arquiteto é também naturalmente valorizado, não só por deter um curso superior, mas por ser reconhecido como um profissional responsável por executar projetos de qualquer sorte (não só edifícios, mas pontes, ou parques, ou a reformulação de algum trecho de alguma rua, etc), seja através de concursos públicos abertos ou mesmo em concursos fechados, com participação de escritórios escolhidos através de notório saber em alguma matéria.

É impensável para um cidadão na Alemanha executar alguma obra sem antes contatar um arquiteto para realizar o projeto correspondente. Em muitos casos, cabe ao arquiteto também acompanhar a obra. É impensável na Alemanha solicitar a um engenheiro para realizar um projeto objetivando reduzir custos, como usual no Brasil. É de fato uma grande diferença “cultural” (hábitos e comportamentos) entre ambos países.

Como se dá essa maior integração entre ambiente e construção ? Pode dar exemplos?

A cidade de Berlim (em outras cidades da Alemanha também é assim) mantém uma característica que, na minha opinião, é a grande chance de um cidadão participar de um projeto: cada vez que a prefeitura de um bairro resolve realizar alguma proposta nova para uma rua, ou parte de um bairro, ela faz um chamado público no jornal e divulga a proposta. Essa proposta fica exposta na sede da prefeitura por um determinado tempo (não menos do que 30 dias) e cada cidadão pode criticar a proposta ou propor alterações, que serão avaliadas pela municipalidade. Há um grande senso de responsabilidade do alemão em relação à sua participação em projetos, reforçando esse aspecto democrático e participativo da municipalidade- Muito diferente do Brasil, onde na maioria das vezes o poder publico municipal se acha capaz de saber melhor o que a sociedade civil deseja ou necessita, sem a participação desta.

Outra questão importante é legal: a flexibilidade que se tem na reutilização de determinadas edificações para novos usos, mesmo em edificações de bens históricos e estando estes sob o manto da proteção legal (patrimônio histórico). Há um grande entendimento de que novos usos são necessários para se manter determinadas edificações sem perder a sua “personalidade” arquitetônica; mas havendo a necessidade de pequenas alterações para se viabilizar o novo uso pretendido. Assim, há caixas d’água de séculos atras que foram transformadas em edifícios residenciais, ou fábricas em escritórios ou residenciais ou mesmo atividades culturais (ou múltiplos usos), aeroportos desativados e sem qualquer intervenção pública (ou privada), transformados em parques públicos pelos cidadãos, onde as pistas de pouso e decolagem são usadas para patins, bicicletas, as áreas verdes para piqueniques, ou atividades culturais diversas, com iniciativas da população.

Com isso mantêm-se as características volumétricas do que já foi edificado, implementando-se usos mais adequados para a sociedade de hoje, atendendo suas necessidades. Sem muitos problemas, edificações de interesse histórico ganham novos usos, absorvidos pelos cidadãos. É muito comum haver concertos de música clássica, ou jazz, ou mesmo outro estilo, em igrejas (católicas e protestantes). Ou danças e/ou outras performances em museus.

O uso do espaço público (ruas, parques) comumente se dá de forma muito criativa pelos cidadãos, ampliando a oferta cultural ou de lazer das instituições publicas e/ou privadas locais. Com isso, há uma boa integração entre os espaços públicos e as áreas edificadas, dinamizando o uso das ruas e bairros!

Como se dá o planejamento arquitetônico de uma cidade como Berlim?

A arquitetura alemã serve-se de materiais e técnicas adequadas à produção alemã. Ou seja, ela tem a característica de “fomenta” a produção de determinados materiais resultados da forte indústria de aço e vidro, por exemplo, e de ser também por estas indústrias “incentivada”, aceitando os desafios propostos pelos arquitetos.

Assim sendo, a principal característica da arquitetura alemã está baseada em uso de materiais como aço e vidro, energia solar, atendimento às condições de sustentabilidade dos materiais em relação ao clima (não desperdiçar energia no inverno, por exemplo, sem perdas através de janelas sem isolamentos).

Há também a questão do custo da mão de obra, altamente elevado em relação ao custo no Brasil. Com isso procura-se o uso de elementos já pré-fabricados seja para uso em algumas paredes, ou lajes, ou sistemas de distribuição de água, energia, estruturas básicas do edifício etc. 

Outra grande diferença para o Brasil está na regulamentação existente em várias cidades: ao construir uma casa, ou um edifício, muitas vezes a cidade já definiu determinadas regras para a volumetria do projeto, ou o uso de determinados  materiais e serem empregados, cores, ou até  a vegetação do jardim, que devera ser “adequada” ao que se tem ao redor já edificado. Muitos arquitetos reclamam da forte regulamentação existente, inibindo a criatividade. 

Sobre o/a autor/a

2 comentários em “O país onde arquitetura e cidadania andam de mãos dadas”

  1. Excelente entrevista! Possibilita ao leitor uma compreenção sobre arquitetura alemã bem como, reflexões sobre como o Brasil carece em leis, conceitos, técnicas, valores, etc.. em arquitetura.

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