O dia em que a Alemanha renasceu

A cada 3 de outubro, os alemães comemoram o fim da divisão do país causada pela Guerra Fria

É difícil escolher um momento em que a Alemanha voltou a ser um só país. Este domingo, 3 de outubro, marca a data oficial da reunificação do país, cindido em dois ao final da Segunda Guerra Mundial – mas a data poderia ser outra. Poderia, ser, por exemplo, o 9 de novembro, dia em que uma alta autoridade da Alemanha Oriental cometeu uma gafe histórica e deu início sem querer à demolição do Muro de Berlim.

Günter Schabowski, um dos mais importantes porta-vozes do partido comunista, que governava a Alemanha Oriental, concedeu uma entrevista coletiva no fim da tarde daquele dia. Erich Honecker, que comandara com pulso firme a ditadura socialista, havia acabado de renunciar depois de uma série de protestos populares. O regime pretendia fazer concessões, entre elas uma permissão para que cidadãos da Alemanha Oriental viajassem pacificamente para o outro lado da Cortina de Ferro.

Quando anunciou esse item na coletiva, os repórteres perguntaram quando a medida entraria em vigor. Schabowski, pego de surpresa, disse a célebre frase: “Nach meiner Kenntnis… ist das sofort, unverzüglich”. Em português, seria algo como: “Até onde eu saiba, passa a valer imediatamente.”  Era a resposta errada: o governo pretendia permitir as viagens só no dia seguinte, e com restrições. Mas era tarde demais.

Ao ouvir o porta-voz do governo dizendo que o trânsito entre as duas metades de Berlim estava liberado, milhares de alemães que sonhavam em sair do lado Oriental partiram para a fronteira. Os guardas não souberam o que fazer para impedir e a multidão tomou conta da cena: foi naquela noite que as picaretas empunhadas pelos cidadãos começaram a demolir o muro.

O 3 de outubro de 1990 seria escolhido mais tarde como data da reunificação por vários motivos – de fato, o governo da Alemanha Oriental ainda conseguiria se equilibrar no poder por mais alguns meses antes de ruir completamente. A Guerra Fria, porém, chegara ao fim, com uma estrondosa vitória do Ocidente contra o bloco soviético. E se em vários lugares isso significaria a dissolução de países (Iugoslávia, Tchecoslováquia e a própria URSS), na Alemanha o movimento foi oposto: depois de quatro décadas e meia, a nação alemã voltou a se unir.

Quem derrubou o muro?

O Muro de Berlim ficou de pé por quase trinta anos: foi erguido às pressas pelo governo da Alemanha Oriental em 1961, quando ficou nítido que sem uma barreira a tendência era que a população do país migrasse em massa para o lado Ocidental. Há quem calcule que um quarto dos alemães já tinham passado do Leste para o Oeste, para escapar da carestia, do autoritarismo do governo e da Stasi, a polícia secreta que tinha infiltrações em todos os cantos da Alemanha Oriental.

“Havia dos dois lados quem quisesse a reunificação, mas era um desejo principalmente da parte oriental”, afirma Luciana Worms, professora de geopolítica e política internacional. “E esse desejo aumentava à medida que ia entrando mais capital na Alemanha Ocidental e o pessoal via aquilo do outro lado do muro. Não era nem que eles ouviam falar, eles viam esses bens de consumo”, diz ela.

Berlim era o símbolo da divisão alemã. Antiga capital da nação, a cidade foi repartida entre as nações que venceram a Segunda Guerra. Embora ficasse na parte Oriental, Berlim tinha um enclave Ocidental (e capitalista) que servia como caminho de fuga e também como vitrine da prosperidade do lado capitalista. Com o muro, erguido do dia para a noite, ninguém mais tinha como passar.

O declínio da União Soviética condenou todo o bloco de nações comunistas na Europa Oriental. Num período curto entre 1989 e 1991, todos os países da Cortina de Ferro viram cair seus governos: Tchecoslováquia, Iugoslávia, Romênia, Albânia, Hungria e Bulgária trocaram de regime e aderiram ao capitalismo. As repúblicas soviéticas do Báltico retomaram sua independência. Na Alemanha não foi diferente.

Centro da disputa entre Estados Unidos e União Soviética, o país se tornou um símbolo importante na Guerra Fria. A impressão que dava era de que aquele que levasse a Alemanha levaria tudo. Ronald Reagan, o presidente americano que fez da luta contra o comunismo o centro de sua administração, apostava todas as suas fichas na queda do Muro.

Mas foram os protestos dos próprios alemães orientais, dos trabalhadores, dos cidadãos, que levaram à necessidade de reformas, à queda de Honecker e do muro. Foram eles que, depois de 30 anos separados, impedidos de passar para o outro lado da fronteira por guardas armados e por uma burocracia cruel, pegaram picaretas e derrubaram o muro da vergonha.

O centro da Nova Europa

Era evidente que a Alemanha reunificada se tornaria uma potência. Maior população e maior economia da Europa, o país exerceria um papel importantíssimo na reconciliação do Continente depois do fim da Guerra Fria. A formação da União Europeia, baseada em pilares que já vinham sendo construídos há mais de três décadas, seria um passo importante. Os anos 90 começavam não só com muros físicos caindo: os países começavam a integrar seus mercados e sua moeda.

“Após a reunificação, a Alemanha torna-se uma espécie de “timoneira” da União Europeia, criada em 1992, no clima pós-Guerra Fria, sucessora da Comunidade Econômica Europeia, da década de 1950”, diz Felipe Figueiredo, do podcast Xadrez Verbal, especializado em política internacional. “Nesse sentido, a política internacional acaba se beneficiando do fato da UE ter certa coesão interna e uma fiadora importante em momentos de crise, como na crise econômica de 2008 ou na crise de refugiados em 2015.”

A crise de refugiados citada por Felipe Figueiredo teve origem na guerra civil síria. A população fugiu em massa para a Europa, mas nem sempre foi bem recebida. Diversos países a essa altura estavam sendo governados por políticos populistas e nacionalistas, que viam nos estrangeiros um perigo. No entanto, a Alemanha de Angela Merkel se tornou um santuário para os despatriados.

A chanceler alemã, que deixa o poder agora, depois de 16 anos, foi um fator de estabilidade a mais no país e no continente. Seu governo de coalizão ajudou a tornar a Alemanha uma âncora da Europa no século 21, num momento em que Itália, Turquia, Hungria e Polônia, por exemplo, cediam às tentações do discurso populista. E não seria difícil ceder a um rumo como esse na Alemanha pós-unificação.

Diferenças internas

Quando a Alemanha voltou a ser um único país, em 1990, as diferenças entre os dois lados da nação eram enormes. Economicamente, viver na área que ficou sob os cuidados do governo comunista era muito mais difícil do que viver no antigo lado Ocidental. Mesmo hoje, três décadas depois, o desafio de diminuir essa lacuna persiste.

“As diferenças diminuíram, mas não sumiram”, diz Felipe Figueiredo. “Mesmo dentro da Alemanha ainda existem diferenças substanciais entre Oeste e Leste, desde questões macroeconômicas, como maior desemprego e menor renda média no Leste, até aspectos sociais, como menos produção de lixo e maiores taxas de vacinação também no Leste. Isso também se expressa na política partidária, com movimentos de extrema-direita mais fortes no Leste, por uma soma de repúdio ao passado socialista pela geração nascida nos anos 1990, maior desemprego entre homens jovens e ascensão de pautas nacionalistas em países como a Polônia.”

Apesar de tudo isso, os extremismos seguem longe de conquistar qualquer fatia de poder considerável na nova Alemanha – e o país continua sendo um exemplo de boa democracia e de estabilidade, com governos duradouros, um sistema de bem-estar social forte e sem grandes dissidências internas. A Alemanha unificada acabou sendo boa não só para os alemães, mas também para a Europa e para o planeta todo.

Esta reportagem faz parte das comemorações dos 50 anos do Instituto Goethe em Curitiba.

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