Nosferatu: cem anos de um clássico absoluto

Filme de Murnau adaptou Drácula para o contexto da Alemanha pós-guerra

Exatos cem anos atrás, a Alemanha produzia um de seus primeiros grandes clássicos cinematográficos capazes de resistir ao tempo,. O diretor F.W. Murnau fazia uma leitura do romance “Drácula”, de Bram Stoker, e lançava seu “Nosferatu”, um filme que é a cara do expressionismo alemão. Ainda na era dos filmes mudos, e em preto e branco, Murnau recorre a truques de câmera e de colorização que se tornariam referência – e consegue contar uma história assustadora que tinha tudo a ver com o pós-guerra e o clima sombrio da Europa.

Para comemorar o centenário do filme, o Plural entrevistou o diretor de teatro e cinema Paulo Biscaia Filho, um aficionado dos filmes de terror e que explica a importância de Murnau e sua obra para a história do cinema.

Qual a importância do Nosferatu dentro do cinema alemão?
Acredito que, imediatamente ao lado de “O Gabinete do Dr. Caligari” de Robert Wiene, “Nosferatu” de Murnau seja a obra visualmente mais icônica do período do cinema expressionista. Podemos somar aí naturalmente a Maria de “Metrópolis” e o assassino de “M”, mas Fritz Lang é quase um gênero em separado. Aliás, a escolha de Lang na projeção de sombra para a primeira aparição do personagem de Peter Lorre em “M” certamente deve muito ao que F. W. Murnau havia feito antes em “Nosferatu”. A sombra como significado central, mais do que um truque esteticamente marcante, é uma metalinguagem para a função e a força do cinema em si. Nos deixamos voluntariamente e agradavelmente nos deixar manipular por estas sombras projetadas na tela. Assim como o conde Orlok surge como elemento catalisador de mudanças na pacata comunidade alemã, o cinema tem a mesma função. A obra de Murnau se esmera em construir narrativas genuinamente cinematográficas num momento histórico em que este conceito ainda estava sendo construído.

Do ponto de vista técnico, o que te atrai mais?
Falei um pouco sobre o significado dos jogos de sombra, mas não falei sobre eles em si. São dois os momentos mais inesquecíveis. A sombra de Orlok subindo a escada e quando a sombra da mão “esmaga” o coração da personagem. São truques aparentemente simples, mas com um impacto soberbo. Não podemos esquecer da célebre forma como o vampiro se levanta do esquife dentro do barco. Corpo inteiro como uma coisa só. Como se ele estivesse flutuando. Este visual para “vampiro saindo do caixão” ainda hoje é copiado e homenageado. De Coppola a Waititi, esse movimento ficou registrado quase como modus operandi de vampiros tanto quanto sugar sangue. Murnau neste filme vai além dos truques ópticos de Melies e realiza construções práticas que são tão realistas quanto mágicas.

Você é um fã de filmes de terror. Até onde o filme influencia o gênero?
É curioso lembrar que Nosferatu é uma “cópia não-autorizada” do Drácula de Bram Stoker. Como o livro e a peça naturalmente não estavam em domínio público na época, Murnau fez algumas adaptações bem safadas para evitar problemas legais. A estrutura narrativa é IDÊNTICA à da história do Stoker. Os nomes e os lugares mudam, mas continuam sendo os exatos arquétipos da história original. Mesmo sendo um “plágio”, Nosferatu se tornou uma coisa independente. Sua concepção visual é tão singular que acaba por se distanciar da obra de Stoker e passa a ser apenas NOSFERATU. Diferente do sedutor que se revela monstro, o Nosferatu é monstro o tempo todo. Isso faz parte inclusive da própria proposta do Expressionismo em destruir máscaras e revelar as entranhas de seus personagens. Como mencionei acima, o monstro de Murnau não é apenas influência mas ganhou grandeza para ser referência essencial quando um cineasta deseja abordar qualquer narrativa que envolva vampiros.

O Murnau acabou indo pros EUA fazer coisas bem diferentes. O nazismo matou o cinema expressionista?
O nazismo matou coisas acima do Expressionismo. O estilo foi apenas uma consequência da catástrofe maior. Aquele governo escolheu matar formas de expressão em seus sentidos mais amplos. Não apenas para cineastas, mas para uma população inteira, foi necessário criar tudo do zero. Se reinventar não por escolha, mas pela necessidade no pior dos cenários. Embora Murnau tenha se distanciado do horror na carreira estadunidense, é sabido que ele, Lang e outros expressionistas foram pilares para a estética do cinema Noir que nada mais era do que um desdobramento dos trabalhos anteriores. Era natural que o Expressionismo deixasse de pautar a estética de forma tão direta. O movimento era resultado da primeira guerra. Novos tempos exigiram novas formas de falar dos horrores que nem sempre precisam se manifestar em formas fantásticas ou sobrenaturais.

Este texto e o vídeo fazem parte das comemoraçõea dos 50 anos do Goethe-Institut em Curitiba.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima