Resistência

A advogada Isabel Kügler Mendes explica o que a leva a defender os direitos humanos, sempre e para todos

Mais do que nunca precisamos falar de Direitos Humanos. O convite do jornalista Rogerio Galindo para colaborar com o site Plural, me leva a esta apresentação.

A memória já não alcança alguns lugares, mas me lembro da permanência da empatia nos dias do passado, da solidariedade que escapa do que é orado, da preocupação com maus tratos aos animais, da presença dos mais pobres, de um cotidiano que contemplava aqueles que podiam sentar em mesas fartas e os que perambulavam ao redor de qualquer coisa.

Uma das minhas maiores lembranças da rebeldia da adolescência é a de ajudar a alimentar os moradores de rua no hotel que pertencia à minha família. Servíamos aqueles que pagavam e eu ajustava os eixos daqueles que não podiam medir o dia em diárias. Havia até certo acordo informal com minha mãe: ela “não via” aquela alimentação por debaixo dos panos, tampouco esquentava com o empréstimo de minha solidariedade pueril.

Sempre tive consciência desse sentimento que nutria com carinho. Casei cedo, aos 17 anos; tornei-me mãe de muitos, incontáveis; e continuei preocupada com as injustiças que atingiam aqueles que viviam nas cercas da sociedade paranaense, esse pequeno feudo de meu alcance. Acredito que parte vem de uma fé católica extraordinária e parte de uma missão que optei por presidir, a de estender a mão sem se preocupar em tê-la de volta.

Acho que não mudei muito.

Ao longo dos anos de mãe participei ativamente de inúmeras entidades sociais em defesa das minorias, das mulheres, dos pobres, dos filhos dos policiais, dos leprosos, dos doentes e dos mais vulneráveis. Havia uma clara predileção de minha mente por minimizar o custo Brasil (desigualdade histórica + retórica demagógica) sobre uma parcela dos conterrâneos, os quais sempre depositaram em mim confiança quase angelical. O desabafo de uma mulher agredida, de uma mãe que viu o filho ser engolido pelas drogas, o choro de quem recolhe dos descartes o próprio pão. Não são fáceis, ainda mais se diários.

Como advogada, me voltei ao Direito Legislativo, primeiro como procuradora da Câmara Municipal de Curitiba e depois como assessora na Constituinte Estadual. Um olhar sempre entregue ao acesso, ao diálogo e questões mundanas que melhoravam invisivelmente a vida das cidades. Uma lombada é capaz de salvar uma vida, afinal. Parte das maiores conquistas do país nasceu sem estardalhaço, sem dono, nos gabinetes de seres muito comprometidos. Uma pátria que amava.

Ao mesmo passo nunca deixei de lado minha atuação voluntária na área dos Direitos Humanos, essa grande cátedra da empatia. Penso que nem é preciso muito esforço para entender essa qualidade de respeito a qualquer um, extirpada da conversa toda característica prévia. Direitos Humanos não tem “se”. Ledo engano, como nos prova o Brasil que clama pelo direito de se assumir virulento.

Como cidadã e advogada, enxergo direitos fundamentais como inerentes da minha pessoalidade e dos meus princípios. Carrego-os do amanhecer ao fim do dia, da leitura da primeira notícia ao último boa noite. Eles permeiam meu modo de encarar o número de desempregados, as moradias irregulares, as decisões tomadas com base nos relatórios dos assessores, as vicissitudes brasileiras.

As minhas atitudes nunca foram movidas por qualquer necessidade de recompensa, mas sim por um espírito democrático muito simples: se tenho direitos e deveres, consagrados em Carta Magna, e desejo um país mais plausível, devo também exercer meu papel de facilitadora. Não há como me refugiar em preconceitos, verdades absolutas, e projeções de ego ou de inimigos. Deixo para quem queira.

Quando defendo os Direitos Humanos previstos na Constituição Federal, que são inalienáveis, defendo todos os brasileiros, o direito à educação, moradia, saúde, trabalho e liberdade, mesmo daqueles que não almejam que esses direitos sejam estendidos a todos. Defendo que ninguém tenha que transformar a própria casa em uma prisão com muros altos e câmeras de segurança.

O presente me reservou as grades. Muitos me conhecem por minha atuação na defesa dos direitos dos presos. O que é diferente da defesa da atitude deles.

A mãe dos presos. A senhora que ora cuida dos presos, das dores de uma condenação e do circuito que envolve vítimas e familiares, ora “se senta ao lado assassinos, estupradores, ladrões e imperdoáveis”. Há cerca de 30 anos atuo nessa área, primeiro na OAB-PR e nos últimos quatro anos como presidente de um órgão da execução penal.

O que sempre procurei difundir, dada a legislação vigente: a restrição da liberdade como único objeto da condenação e a necessidade de efetivar uma reintegração social com estudo e trabalho, harmônica. O que procuro defender, diante de uma nova discussão parlamentar: a prisão como exceção para poucos casos e penas alternativas, mas com olhar voltado quase que exclusivamente para diminuir as diferenças sociais que antecedem o caos.

Pequenas intervenções no dia a dia das comunidades carcerárias representam ganhos incalculáveis na recuperação e orientação desses presos, diante de um sistema que pressupõe esquecimento e loteamento. Como a lombada, uma porta aberta pode fazer diferença aqui. Mas somos poucos nesse país de sonhos interrompidos.

Os direitos humanos integram minha vida profissional e pessoal. Não consigo me ver alienada, sem me indignar diante das injustiças, omissões, crueldades e desumanidades daqueles que têm o dever e o poder de garantir a lei. Nas frases ou nas atitudes. Essa sempre será minha luta, as vezes barulhenta, quase sempre inglória.

Olhando a minha trajetória em perspectiva diante dos acontecimentos mais recentes do país, em que brutalidades ideológicas marginalizam o mínimo tratamento mais humano, penso naqueles que também atuam nas sombras para dar protagonismo aos que precisam falar. Chegamos numa encruzilhada, num deserto de desesperança, mas uma única injustiça corrigida em uma semana de trabalho me enche de forças para continuar oferecendo uma resistência pacífica, como aquela da jovem que entregava macarrão aos pedintes de outro tempo.

Há muita gente pedindo ajuda e cada vez menos gente disposta a ouvir, quem dirá ajudar. Temos que resistir, esses cidadãos de outros tempos. A onda do desrespeito e da intolerância pode ser alta, mas não será eterna. Alguns querem trocar Direitos Humanos por Quem Aperta Mais Forte. Não conseguirão.

Leia mais artigos de Isabel Kugler Mendes

https://www.plural.jor.br/sistema-penitenciario-protagonista%EF%BB%BF/

 

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