Desaparecidos

Quem é vivo sempre aparece, assim diz o ditado. Só que desaparecer faz parte da vida, e não da morte. Sei bem disso, já convivi com as duas

Eram nove horas e Ivan ainda não tinha chegado no escritório. Como era um funcionário exemplar, muitos estranharam sem comentar. O tempo foi passando e nada do supervisor, que costumava ser um dos primeiros a chegar, finalmente aparecer. A reunião marcada pela manhã foi adiada e os e-mails começaram a se acumular, sem obter a resposta de costume. “Deve ter havido um imprevisto familiar” – pensou um – enquanto outro vasculhava as notícias municipais à procura de algum engarrafamento, ou pior, um acidente que justificasse aquele atraso tão inesperado.

Um pouco antes do meio-dia veio a resposta. A gerente da empresa entrou na sala e pediu para que todos se aproximassem. Ela tinha acabado de receber a ligação da esposa de Ivan avisando que ele tinha sido hospitalizado devido a algo grave, muito grave. Ninguém da equipe soube explicar exatamente o que ele havia tido, alguns suspeitaram de um AVC, um ataque cardíaco, uma queda brusca… Uma dessas coisas horríveis que podem acontecer de uma hora para outra com qualquer um.

Durante dias a mesa de Ivan ficou vazia e silenciosa. Mesmo com todos a enxergando, poucos se atreviam a se aproximar. Ela transbordava um passado congelado: a agenda aberta, os lápis e as canetas desalinhadas e um calendário mostrando o mês anterior. Se duvidasse, existiriam algumas bolachas velhas em uma das gavetas. Era costume do supervisor mordiscar algumas para enganar a fome entre um trabalho e outro, entre um ano e outro, e assim por diante. Começaram a surgir lembranças dos tempos de campanhas, de árduos trabalhos e de pizzas grátis no final do expediente. “Apesar de ser um profissional bastante sério, Ivan era bem-humorado” – alguém disse. Era. Foi a primeira vez que se referiam a ele no passado. Todos se silenciaram.

Mais uma semana se passou e a esposa de Ivan foi recolher as coisas dele no escritório. Apesar de abalada, tentava transparecer confiança. Conversou com alguns mais chegados, abraçou a gerente, sorriu um sorriso curto, daqueles sem vontade. O amado supervisor já estava em casa, mas apesar da alta hospitalar, ainda estava acamado. “Dizem que a recuperação será lenta, mas estamos cuidando de tudo para que ele fique bem”. Estimativa de retorno? Não, não há. Essas coisas são complicadas, sabe? Às vezes nem parece que ele ainda está lá.” Ela então disfarçou uma lágrima e se apressou para retirar todas as coisas. Sim, havia bolachas salgadas na gaveta. Murchas e esquecidas.

Ele nunca mais voltou a trabalhar lá. Foi substituído por um moço simpático que, apesar de apresentar alguns problemas iniciais, acabou por se adaptar ao ritmo corporativo. Ivan virou lenda, mas no mal sentido. De vez em quando alguém falava do “tempo do Ivan” e os funcionários mais velhos riam com certa saudade. Porém, com a rotatividade intensa de colaboradores era certo que um dia até seu nome seria esquecido. Desaparecia assim como o seu crachá, as suas bolachas e suas piadas sem graça durante as horas extras. Ivan não era perfeito, mas fazia o melhor que podia. Como todo mundo, ele fazia o melhor que podia.

Ivan não morreu, pelo menos não oficialmente, mas sua rotina mudou drasticamente depois daquele dia. Após semanas de negação e medo, ele teve coragem de tentar sair da cama e, consequentemente passar mal ao ficar em pé. O tempo das visitas constantes já tinha cessado e agora só era ele, a fisioterapeuta, a enfermeira e a sua família, ou o que tinha restado dela. Depois de longos meses e pouco progresso, foi aposentado por invalidez, e toda essa incapacidade se alastrou em sua vida familiar: não era mais o herói do filho, nem o marido atencioso, muito menos o vizinho respeitado. Junto com a sua profissão, todas as suas características haviam desaparecido.

Não sei especificamente o que Ivan teve, mas sei exatamente o que ele está sentindo. Minha cadeira também ficou vazia alguns dias no meu trabalho, assim como o meu lugar ficou vago nas saídas de final de semana. Sobretudo no meu primeiro ano pós-AVC, a solidão foi a minha pior sequela. E nas raras vezes que saia, sentia que meu jeito animado e meu pensamento rápido, características tão presentes em minha personalidade, haviam desaparecido junto com parte do meu cérebro. Também resmungava e me cansava com facilidade, era muito difícil continuar seguindo o protocolo de sociabilidade. Ou seja, havia um muro dividindo a minha vida antes e após o acidente. Não era culpa de ninguém, muito menos minha, mas passei a ser cada vez menos convidada para os eventos. Isso me doía, mas ao mesmo tempo me aliviava, porque cada tentativa de ser como eu era me cansava muito.

Todo esse período me proporcionou uma das experiências mais temidas pelas pessoas da minha geração: ficar só, somente com os meus pensamentos e percepções desconfiguradas. Com as convulsões e as crises de ausência, perdia a dimensão do tempo e do espaço e flutuava nos meus pensamentos repletos de sequelas cognitivas. Neles estavam eu e minhas memórias. No desespero em me recuperar a fim de “ter a minha vida de volta” (todo sobrevivente deve bem entender o peso dessas aspas) me agarrei a tudo que eu tinha, e esse tudo era pouco. Muito pouco.

Ao me ter como principal companhia, tomei consciência das pequenas e grandes coisas que me tornavam ser como sou, e para meu espanto, poucas delas tinham a ver com a minha profissão. Meu trabalho era apenas um status, um ganha-pão, não tinha a minha coragem e minha sede de viver. Que pena! A rotina havia consumido o que eu mais amava em mim, e de alguma forma bem inusitada, foi durante a reabilitação do AVC que recuperei meus movimentos do corpo e da alma. Nenhum deles eram os mesmos, mas todos eram meus. Foi nesse tempo que, mesmo estando desaparecida do meu trabalho e dos bares do Largo da Ordem, voltei a aparecer por meio de meus textos. Reapareci de outra forma. Mesmo desmiolada, passei a usar mais os meus miolos, o que sobrou deles.

Espero que Ivan, assim como todos aqueles que desapareceram de suas vidas por causa de algum infortúnio, tenham um processo semelhante ao meu. Sabe-se lá o que a vida vai trazer para a gente. Há várias formas de desaparecer, e ficar doente ou morrer são apenas algumas delas. Sem contar aqueles que desaparecem vivendo, esquecem seus sonhos, suas éticas e de que suas escolhas são as linhas de suas histórias. Alguns deles olham para o Ivan com piedade e agradecem por não estarem como ele. Mal sabem que mesmo machucado e deitado, Ivan está encontrando a si mesmo. Um caminho pouco percorrido pelos que insistem em ignorar seus problemas.

Todos nós desaparecemos, seja no presente, no passado ou no futuro. Esse é o nosso destino, faz parte da vida, mas não necessariamente o fim. Mesmo em momentos extremamente difíceis podemos construir perspectivas, e até mesmo ousar ser feliz de vez em quando (principal desafio de nossa existência).

Gostaria de dizer para Ivan que ele ainda poderá fazer amigos e que ainda terá vitórias tão grandiosas quanto se levantar da cama sozinho, que ele aprenderá novas coisas, que desfrutará novos sabores (muito além das bolachinhas desaparecidas na gaveta) e que aprenderá um novo jeito de ser pai, amigo e vizinho. Desejo que nada o impeça de continuar vivendo e que a falta de mobilidade em suas pernas não reflita em sua vontade de movimentar-se por inteiro. Quero muito dizer a ele tudo isso, mas não posso, porque não o conheço. Mas sei que ele existe. A história é sempre a mesma.

No mundo do AVC há uma frase de reabilitação que diz: “Enquanto há cérebro, há vida!”. Ela serve para motivar os sobreviventes em sua luta diária, mas acredito que o terapeuta que ousou a dizê-la não tenha noção do impacto dessas palavras. Quem é que pode determinar o nosso tempo, a vontade e a possibilidade de renovar, senão nós mesmos? Nunca é tarde demais. Todos nós sobrevivemos nos ressignificando.

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