Censura a “O avesso da pele” é expressão do autoritarismo moralista da extrema-direita 

É a denúncia dos males que o racismo e a violência policial produziram e produzem, no passado e no presente, o que inquieta a extrema-direita.

“O avesso da pele”, o premiado romance de Jeferson Tenório, trata de temas delicados à realidade brasileira. Perpassando e costurando a trama, além da relação entre um pai, Henrique, e seu filho, Pedro, o enredo explora problemas como a precarização da educação e das escolas públicas e, de modo central, o racismo e a violência policial.

Ambos os temas estão presentes em todo o livro e provocam efeitos os mais diversos, de insultos e menosprezo, às vezes velados, em outras nem tanto, ao assassinato de Henrique, professor de uma escola pública na capital gaúcha, durante uma abordagem policial. 

Mas “O avesso da pele” não é apenas um livro sobre racismo e violência policial. É um romance sobre o luto e o trauma; sobre as cicatrizes, históricas, produzidas por décadas, séculos, de violência racial e de classe, que nos atravessa e nos constituiu como sociedade e nação. É, nas palavras do próprio Jeferson Tenório, um livro sobre “as coisas que se perdem quando o Estado e a polícia agem dessa forma”. 

São essa trama e esses temas o “conteúdo inapropriado” que se quer censurar mandando retirar a obra das bibliotecas escolares. As cenas de sexo e “palavras de baixo calão” são a cortina de fumaça usadas para legitimar a medida, já que não soaria bem a governadores, deputados e a uma diretora de escola, dizerem a verdade sobre as razões da censura.

Com algum esforço, consigo acreditar que Janaina Venzon, diretora de uma escola pública de Santa Cruz, no Rio Grande do Sul, que deu origem ao imbróglio, tenha enrubescido ao ler cenas daquilo que provavelmente ela não faz, ou faz mal. Mesmo um prazer tão elementar como o sexo pode causar repulsa em quem não o desfruta adequadamente.

Mas é difícil acreditar que, apenas para ficarmos nos limites do nosso estado – a censura à obra já alcançou, até o momento em que escrevo essa coluna, além do Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul –, Ratinho Jr., Ricardo Arruda, Tito Barichello ou Hussein Bakri compartilhem do pânico moral da diretora gaúcha, e por pelo menos duas razões.

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Primeiro, estamos falando de uma gente alinhada a um ex-presidente que confessou ter “rolado um clima” com meninas menores de idade durante um passeio de moto pela periferia de Brasília. Em outras palavras, a preocupação com a “inocência” de nossos adolescentes é só mentira mesmo.  

Segundo porque, diferente da educadora riograndense, nenhum deles leu o livro. Sobre isso, aliás, há de se reconhecer a sinceridade do deputado Hussein Bakri que, em sessão da Alep, disse que “não quer nem chegar perto do que está escrito no livro”. Quer dizer, mesmo um sentimento equivocado como é o pânico moral de quem vê pornografia “all the time”, implica que a pessoa tenha tido algum contato com o que provoca o sentimento de repulsa e medo. E bolsonaristas fogem de um livro como o diabo foge da cruz. 

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Há as razões eleitoreiras, por certo. Ao classificar o romance como “lixo” e uma “obra satânica da esquerda”, políticos de direita acenam, principalmente, para seu eleitorado. Embora também não tenham lido “O avesso da pele”, nem o lerão, seus eleitores e fiéis se sentem protegidos, e a seus filhos, graças à cruzada parlamentar contra aquilo que consideram uma ameaça, mas que prefiro chamar de inteligência. 

Novas fogueiras para novas degenerescências 

Mas não é apenas isso. O banimento de obras literárias das bibliotecas escolares é, também, uma maneira de estigmatizar narrativas que confrontam aquilo que a extrema-direita vê como ameaça a sua visão de mundo estreita e autoritária. 

Recentemente, já foram objeto dessa sanha persecutória, entre outros, “A bolsa amarela”, de Lígia Bojunga, por propagar a “ideologia de gênero”, e “Meninos sem pátria”, de Luiz Puntel, por “doutrinar crianças com ideologia comunista”. Nem clássicos como “Macunaíma”, de Mário de Andrade, e “Os sertões”, de Euclides da Cunha, escaparam: em 2020, o governo de Rondônia os incluiu em uma lista de 43 livros que deveriam ser recolhidos das escolas por seu “conteúdo inadequado a menores de 18 anos”.

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Em comum, esses romances, além de bem escritos, ampliam a visão de mundo de leitoras e leitores, apresentando-lhes realidades outras que não aquelas já familiares.  

Desde as possibilidades de subverter a linguagem, algo próprio à boa literatura, até a representação ficcional de temas e problemas cotidianos, tudo, ou quase tudo, na literatura, oferece a possibilidade da empatia e da sensibilidade, da solidariedade e da crítica, da diferença e da pluralidade e, fundamental, da liberdade de escolher outra vida que não aquela que nos tentam impor. 

É isso, e não o uso de palavrões ou cenas de sexo, que incomoda bolsonaristas. Não é o erotismo nem as “expressões de baixo calão”, mas, especificamente no caso de “O avesso da pele”, a denúncia dos males que o racismo e a violência policial produziram e produzem, no passado e no presente, o que inquieta o governador e seus deputados. 

Gastar milhares de reais em recursos públicos para que adolescentes aprendam, nas escolas, que existe uma “mentalidade rica” e uma “mentalidade pobre”, isso sim faz parte do projeto educacional dos governos de direita: produzir, sob o pretexto de os tornar empreendedores, adolescentes resignados à sua própria miséria e insensíveis às desigualdades estruturais que limitam suas possibilidades e seus horizontes. 

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Em passado mais ou menos recente, a feiura e a deformidade foram as justificativas para que nazistas lançassem ao fogo obras consideradas degeneradas. Claro, o objetivo era alinhar a arte à utopia totalitária de construção de um mundo plano e homogêneo; nos termos nazistas, puro.  Não casualmente, eram degeneradas e impróprias a leitura obras de cunho político esquerdista ou que se desviavam daquilo que era considerado moral, além de textos modernistas e, principalmente, de autores judeus. 

Não teremos, no presente, as fogueiras em praça pública cujas imagens incomodam, ainda hoje, muitos de nós. Não tenho muitas dúvidas de que algumas lideranças políticas e religiosas, em seu íntimo, desejem isso. E que liderariam, com prazer, a turba raivosa e ansiosa em ver arder em chamas páginas e mais páginas de obras “degeneradas”. 

Mas há um limite, ainda, do que pode ser dito e feito publicamente. Lamentavelmente para nós, isso não serve de consolo nem de freio à ameaça do autoritarismo extremista. 

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