Céu de carneirinho

Diz-se por aí, e já li também, que Curitiba é campeã em dias nublados. É um título de envergadura internacional, inclusive – ganhamos de Londres, segundo consta; e olha que a capital britânica é reconhecida pela sequência interminável de dias em que, ao se olhar para cima, só se avista densa camada cinza.

Nunca fui a Londres, tampouco está entre minhas prioridades de destinos. Mas, por um tempo, escrevi para um jornal voltado a brasileiros no Reino Unido, o Brasil Observer, que era distribuído gratuitamente em alguns pontos, como estações de metrô. Não faz muito tempo – cinco anos atrás, por aí. Também não foi por muito tempo: por dois anos, mais ou menos. Relatava, aos compatriotas em terras estrangeiras, e aos nativos em sua pátria, e mesmo a outros povos migrantes, o que se passava no Brasil, na política, na economia, na cultura. Os textos eram impressos em português e em tradução em inglês. Tinha trabalho o tradutor ou a tradutora, porque eram tempos, aqueles, em que emergiam aberrações transformadas hoje neste turbilhão donde estamos metidos, e que parece sem fim.

Essa digressão foi para dizer que, por ter mantido tal prazerosa interlocução com o povo lá na Grã-Bretanha, sinto-me na obrigação de enviar à Inglaterra uma boa nova, quem sabe seja um sopro de felicidade: ao menos em 2020, Curitiba não será páreo para a cidade londrina em disputa tão peculiar a qual estamos a tratar aqui, essa de líder em dias nublados no ano.

E nem é pela escassez de chuva que o título escapará de mãos curitibanas. Afinal, não precisa água precipitar para ficarmos encobertos pelo cinza. Pelo contrário; não raros costumam – ou costumavam – ser dias e noites de nuverio intenso, intermináveis, insuperáveis, sem que necessariamente chovesse. Bastava ser o suficiente para inviabilizar a presença do astro rei; para deixá-lo sob manta gris, esta a servir de grossa cortina para os raios solares, embora, pela força da estrela imperial do universo, ainda ela conseguisse fazer-se reluzir-se e dar tons prateados ao carregado cinza.

Só que esse cobertor, uma hora não resistia, e vinha abaixo, banhar a cidade.

Não é o que está acontecendo, quando estas linhas nascem. Casualmente, até chove lá fora neste instante. Dá para ouvir o encontro da água com o asfalto; dá para ouvir o deslizar dos veículos por sobre a pista recentemente recapeada e, por isso, lisinha, lisinha. É um barulhinho bom, refresca os ouvidos de ruídos nem sempre agradáveis.

Chove, porém é coincidência. Havia semanas sem cair gota. Há meses, quando cai, a água é pouca, e vem por par de dias, no máximo. As fotos de represas em solo rachado, as torneiras abertas a despejar vácuo, caminhões pipas à porta de alguns lugares compensando o racionamento que, a esta altura, dura os mesmos cinco meses em que enfrentamos a pandemia, mostram cenas que lembrariam o semiárido brasileiro, conforme explicam os livros de Geografia. Mas que nada. É seca, é chão trincado. No Sul, não no Nordeste.

Não temos Luiz Gonzaga a amenizar a dor, a clamar por Asa Branca. Contamos, porém, com o trabalho de uma resiliente e indormida – como adjetivava, por vezes ironicamente, o bravo Camargo; aqui, o uso é literal – parte da imprensa, que se não alivia com poesia, areja lançando luzes aos fatos. Então de repente me veio a memória o quinteto Martha, Teresa, Marisa, Débora e Ruth. Daria time de basquete: a primeira armando, a segunda avançando por uma das alas, se revezando com a terceira; as duas últimas, se movimentando pelo garrafão. Mas não são das quadras, elas; o campo de jogo é outro, redação, mulheres de uma geração de jornalismo autêntico. E é Teresa quem, em sua coluna, manda esta de três: a crise hídrica não é só culpa de São Pedro ou do Pajé, que não fazem chover. Tem falta de investimento, porque interesses econômicos e financeiros se colocaram acima da vida humana, castigando a rotina das 1 milhão e 200 mil pessoas de Curitiba e região metropolitana incluídas no rodízio do abastecimento.

Peço permissão para, após ter explanado satisfatoriamente sobre o assunto, o da crise hídrica, e correlato ao mote desta crônica, deixar esse tema para outra hora. De crise, estamos até a tampa.

Não pense, leitor ou leitora, que se tratam de rodeios dos quais, eventualmente, possa emergir alguma desculpa convincente a justificar a perda do título a que nos referimos lá no início do texto. Tampouco são devaneios decorrentes de um isolamento social perturbador. São, sim, contextualizações imprescindíveis para a compreensão do fenômeno sobre o qual estamos a nos dedicar alguns minutos – muitos para os mais cadenciados na leitura, poucos para os mais acelerados.

Pois bem, não é pela falta de chuva, nem pelas contradições trazidas à tona por Teresa, que Curitiba está a perder o posto de que falamos. Também falamos: poderia não chover, entretanto seria plenamente normal termos as nuvens lá no alto, quietinhas encobrindo o território curitibano, movimentando o suficiente para, no máximo, dar lugar a outra massa de condensação, sem vir ao chão.

Não é ao que assistimos.

Com a pandemia veio, talvez por boas intenções divinas de atenuar as angústias, uma temporada de teto aberto e sol. Da janela, nestes meses todos de uma quarentena interminável, o confinamento foi compensado por uma paisagem a qual contaríamos nos dedos da mão a quantidade de vezes em que, num ano sob condições normais de temperatura e pressão, se repetiria. Ah, sobre “condições normais de temperatura e pressão” os livros de Química nos dão explicações. Ou os de Física. Ambos, provavelmente.

Se você está, ou esteve, por Curitiba nesse período – ou em parte dele – e pôde (insisto no acento diferencial, em que pese ter sido extirpado pelo último “acordo” ortográfico) ter a oportunidade de olhar para cima, sabe da pintura de que estou falando. Se não, espero ser possível imaginar com precisão, porque ter nas retinas, ao menos de maneira imaginária, a reprodução de tamanho cenário, é um alento para temporada tão dolorida do já citado isolamento social, indispensável, ainda que por muitos deliberadamente ignorada (para azar de todos).

Da janela, avisto o Guadalupe. A muvuca não é a costumeira. No entanto, ainda há muita gente concentrada por ali. Muitos não por opção, sim porque são obrigados. Uma parte, trabalhadores e trabalhadoras dos chamados serviços essenciais, e que têm no terminal a condução para casa. Outra parte, funcionários de serviços nem tão essenciais assim, todavia forçados a não cumprir isolamento social porque as medidas de flexibilização liberaram os patrões a abrirem seus negócios. Os patrões, mantêm o home office, ou, quando saem, vão protegidos em seus carrões. Os empregados, estes têm de sair de casa, se amontoar em terminais e ônibus lotados, correndo o risco de adoecerem e levarem o vírus para mãe, pai, tios, filhos. O coronavírus não escolhe classe social, mas as decisões do poder econômico e político escolhem quais classes serão protegidas, quais serão expostas.

O Guadalupe é onde Curitiba se encontra com sua vizinhança. Dali chegam e partem coletivos para São José dos Pinhais, para Colombo, para Pinhais. Há uma linha que vai longe: a Tunas do Paraná. Os mais antigos chamam “rodoviária velha”. A alcunha é autoexplicativa: no passado, a rodoviária de Curitiba funcionava naquele local. Se bem que faz tempo: a nova tem quase 50 anos. Mas é assim, nas cidades: as coisas, os lugares ganham determinada identificação que se enraíza, se pereniza. E mesmo quando não guardam mais relação com o uso de antes, essas coisas e lugares seguem sendo chamados pela forma como se tornaram conhecidos. Isso é de uma riqueza; é uma forma lúdica, oral, de se contar a história de uma comunidade.

Por uma outra razão o Guadalupe é bastante conhecido: é o endereço do santuário de Nossa Senhora. O santuário tem fama para além dos limites geográficos do Paraná. É só eu contar que tenho vista para o Guadalupe para, sendo do Rio Grande do Sul ou do Ceará, o interlocutor de pronto reconhecer de onde, sobre o que, falo.

Bom, os de perto e os de longe estão impedidos de peregrinarem ao Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe. A pandemia obrigou orações em casa, de modo que o entra e sai na igreja está suspenso. Antes, às vezes dava para avistar e ouvir procissões saindo dali. Quase que um camarote. Há alguns meses, entretanto, não se ouvem mais os cânticos, como não se é possível acompanhar o caminhar dos católicos. Os de boa fé hão de continuar a rogar por nós, mesmo à distância.

Pois esse Guadalupe, ponto de encontro de gente, de todos os cantos, por motivos diversos, e de vários credos, gente que embarca e desembarca, que ali se fixa, tornou-se um cenário com outros contornos, dispostos a amenizar as angústias dos tempos atuais que se arrastam. Tem ficado dourado pela manhã e pela tarde ensolaradas. Ao cair dela, a tarde, para o emergir da outra, a noite, o Guadalupe tem sido emoldurado por tonalidades. O crepúsculo, o lusco-fusco, a natureza busca recolorir o Guadalupe.

Tonalidades de laranja e azul vão marcado o passo a passo do poente. Lá no Guadalupe, muita gente está em fila, à espera dos ônibus que levam para aqueles destinos enumerados há pouco. Outras pessoas já estão embarcadas, em coletivos lotados. Aliás, um absurdo, não por culpa dos passageiros, sim do sistema; um absurdo a aglomeração no transporte em tempos quando ficar longe é o que mais precisamos. Todas as pessoas, as da fila e as embarcadas, sem dúvida têm o dia singularmente iluminado com a pintura que a natureza apresenta ao alto. Pode ser que muitas delas, extenuadas pelo dia de labor, não tenham forças para se ligar na belezura que as protege. Outras, calculando os afazeres a encontrar quando chegar ao lar, estão sem cabeça para contemplações. Algumas, em busca de algum suspiro, ao mirarem ao alto esperando recado celestial, deparam-se com a aquarela. Todas, dando-se ou não conta, são presenteadas.

Este operário, que consegue cumprir sua jornada de casa, acompanha, do surgir ao fugir, as gradações dos tons de laranja e azul sobre o Guadalupe e os trabalhadores e trabalhadoras coincidentemente reunidos naqueles poucos minutos de duração do espetáculo, à espera de sua condução. Em meia hora, no máximo, tem-se o início, o ápice, e o despacho. Cada combinação de tonalidades dura poucos minutos. A maravilha é tanta que merece ser compartilhada, e, como num diário crepuscular, a cada anoitecer uma foto é enviada.

Ocorre que, em alguns desses dias, não muitos, os laranjas e os azuis do poente ganham um incremento. Algumas manchas, não no sentido de algo que polui, causa ruído – não é a mancha na roupa, a mancha na parede. Os laranjas e os azuis do poente sobre o Guadalupe ganham pinceladas de branco; machinhas gorduchas, afofadas.

Em alguns desses dias, e não foram muitos, mas em quantidade que chama a atenção, flocos de nuvens vieram passear pelo céu de Curitiba, no intervalo de tempo em que o Sol vai cedendo seu lugar para a Lua. Os floquinhos chegam sem pretensão nenhuma de se aglomerarem e tornarem o teto cinza, como numa última tentativa de ajudar a cidade a resistir diante da iminente perda do posto de lugar com mais dias nublados no ano, em todo o mundo. Não. Embora as nuvens até pudessem se aglomerar – elas podem, quem não pode somos nós -, vêm, como dito, em floquinhos. Sobrevoam Curitiba, como pedaços de algodão no céu.

Ou, como bem definiu Priscila: são como carneirinhos a passear pelo azul celestial.

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