Veraneio azul

Quando meu marido chegou em casa e me contou essa história, eu sabia que ia ter que escrevê-la mais cedo ou mais tarde. Os ecos do passado falam alto demais, ainda mais alto do que o nosso desejo de esquecer.

A primeira coisa que você precisa saber é que eu não vivi nada do que vou relatar aqui. Mas mesmo eu consigo sentir o peso sufocante dessas lembranças coletivas em cada indivíduo vivo hoje em nossa sociedade. A memória é a própria formação da identidade.

A segunda coisa é que faz tempo que eu tento escrever esse conto, mas só hoje encontrei a raiva e a tristeza que me deram a inspiração necessária para terminar.

***

Ele entra no banheiro e me diz que hoje perdeu o fôlego na rua. É que estava saindo do cabeleireiro e deu de cara com uma Veraneio azul, virando a esquina.

“Veraneio, o carro? Eu já vi um desses por aqui, era azul mesmo, bem escuro. Acho que até já fotografei. É um carro bonito, antigo.”

Sim, um carro velho que não deveria assustar ninguém. Mas que despertou nele tantas memórias ruins.

 ***

Apesar de ainda não ter entrado na faculdade, havia decidido se inscrever no grupo de teatro da Universidade Federal. Pirralho de colégio público, vindo de um bairro periférico, conseguiu a desculpa que precisava para circular nos corredores e botecos dos universitários e intelectuais.

Era como um sonho. Participar daquela vida política pulsante do início dos anos 80, quando a ditadura, que já tinha vivido sua plenitude, estava em visível decadência. Costumava assistir quando os professores desciam para tomar cerveja ao lado dos alunos e terminar a aula no bar, sentados em banquinhos. Ali, se embebedou de direito, filosofia, sociologia, história, artes. Se sentia em casa.

A chamada resistência não existia mais – já estavam todos mortos, exilados ou, simplesmente, “desaparecidos”. A esperança convivia lado a lado com o terror. Ele sentia que tinha algo que devia pegar com as mãos, tomar conta e fazer.

Quando começou a ser chamado pras reuniões na Universidade, viu que tinha ganhado a confiança dos mais velhos, e participava de todas que podia. Elas começavam tarde e continuavam noite adentro, às vezes até de madrugada – único horário que todos podiam se encontrar. Como não era muito fã de festas, não tinha dificuldade em participar de todos os encontros que podia. Achava até irresponsabilidade que, em um momento tão grave, outras pessoas de sua idade estivessem mais preocupadas em se divertir, beber e usar drogas.

“Eu saía, sim. Mas só me atraía a arte libertária, questionadora. Me negava a qualquer entretenimento que fosse só alienação.”

Com 17 anos, só a independência lhe importava.

Não demorou pra sair do grupo de teatro, onde as discussões eram muito filosóficas, e frequentar mais e mais reuniões, onde a possibilidade de ação era real. Falavam muito da criação de um partido. Sobre a retomada da democracia. Sobre a certeza de um futuro maravilhoso muito próximo, e de que o alvorecer estava logo ali, no horizonte.

Mas ainda era noite escura. E conversas daquele tipo eram perigosas.

***

Não sabe dizer exatamente quando, mas em algum momento começaram a notar, nas ruas vazias e mal iluminadas do centro da cidade, a tal Veraneio azul marinho. O carro aparecia após as reuniões e os perseguia.

“Perseguia tipo correndo, ameaçando?”

Eles se faziam notar. Ficavam rondando, dando voltas, desaparecendo na esquina e aparecendo de novo. Não dava pra ver quem estava dentro, mas dava pra saber que você estava sendo seguido. Às vezes, seguiam o ônibus em que você entrava durante o trajeto inteiro. E ficavam parados, esperando de motor ligado enquanto você entrava em casa. Era assustador.

Então ele e os amigos passaram a desenvolver técnicas pra despistar o carro. Às vezes iam todos juntos para um lugar combinado e, então, corriam em direções diferentes. Por mais que um deles fosse seguido, os demais estariam a salvo.

Sozinho, ele sabia que precisava fingir normalidade e pegar qualquer caminho que obrigasse a Veraneio a virar a esquina e perdê-lo de vista. Então corria. Corria. Se escondia. Esperava. Muito mais tempo que o necessário para um carro fazer uma volta na quadra. E corria de novo. Pegava o caminho mais longo. Dentro do ônibus, desconfiava dos passageiros. Descia no ponto errado ou fingia que ia descer para ver se alguém iria descer junto. Olhava para os lados e por cima dos ombros na rua.

Imagina os deprimentes homens dentro do carro. Cheios de ódio, anotando em caderninhos patéticos informações sobre jovens hippies e estudantes barbudos, para depois remeter esses relatórios ao regime avisando sobre as atividades subversivas que estavam sendo monitoradas.

Não são diferentes dos propagadores de ódio de hoje.

***

Me conta que todas essas lembranças vieram à tona em questão de segundos. Depois que o susto passou, parado na calçada com o coração disparado, achou ridículo sentir medo agora, já maduro, de um pobre carro enferrujado soltando fumaça pelo escapamento. Se houvesse uma perseguição política, faria muito mais sentido que os milicos escolhessem um carro mais moderno – uma Duster ou uma Tucson, por exemplo.

Talvez fosse pura paranoia. Talvez essas tantas Veraneios sequer estivessem perseguindo alguém.

“Se um comerciante estacionou sua Veraneio azul perto da reitoria pra visitar a mãe em uma noite qualquer de 1982 ou 83, ele foi motivo de muito pânico” fala de repente, rindo.

Mas percebe que a Veraneio azul habita nosso imaginário como algo que pode até não ser verdade. Uma entidade ou um monstro, um inimigo onipresente que passou ocupar, rua a rua, o espaço de nossa frágil estabilidade. Não sabe quantas vezes viu a Veraneio e quantas ouviu falar dela. Não sabe quantas existiam na cidade, e se todas tinham o mesmo tom de azul marinho esverdeado. Mas lembra dela. Sabe que não é invenção, existiu de fato.

No limite entre a memória e a imaginação, na atmosfera sobrenatural da história obscura de um país que nunca conseguiu explicar seu passado, o fantasma da Veraneio azul ronda a cidade perseguindo jovens à noite. Temos a casa tomada por forças estranhas, e nem com muita vontade podemos ignorar o clima asfixiante dessa presença.

A memória pode mudar a cor de um carro, a fisionomia de um rosto, a data exata de um acontecimento. Mas os fatos são imutáveis.

Não se pode viver sem pensar. Não podemos viver sem descer a esses porões.

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