Um dia enfadonho

Quando dou por mim, estou há 20 minutos olhando para a TV, enquanto quatro entendidos discutem um campeonato de futebol que não está acontecendo.

Há quase beleza nessa persistência em cavar normalidade na aflição, como um cachorro tentando cavar um buraco num bloco de concreto armado.

Me faz pensar na história da velhinha que na Londres de 1940 saía para comerciar sob a chuva de fogo da Luftwaffe:

– Madeleines! Madeleines! Quem quer comprar madeleines?!

Um esforço formidável. Perfeitamente imprestável, mas ainda assim formidável.

Na TV, a precariedade da produção – os rostos dos quatro comentaristas tarimbados dispostos em mosaico, mal iluminados e capturados por webcams – manda o esforço para o beleléu.

Até para os padrões de uma mesa-redonda de futebol, é muito barulho por nada. Muito barulho para pouco futebol.

Nenhum futebol, na verdade.

Tudo está muito longe do normal.

Posso conviver com isso.

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Quando dou por mim, estou simplesmente juntando qualquer coisa dentro de uma panela, agarrado a uma crença meio mística de que aquilo quem sabe possa virar uma refeição.

Eu costumava respeitar as regras (cof, cof). Ou pelo menos eu costumava respeitar aquela regra que diz que não se deve cozinhar sem ter uma ou duas cebolas à mão.

Mas também existem regras contra assassinatos, extorsões e cotoveladas dentro da área, não existem? E ainda assim essas coisas acontecem, não acontecem?

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Quando dou por mim, estou trabalhando há 15 horas. Olho pro resultado e parece que passei as últimas 15 horas tomando caipirinha com os pés erguidos na janela enquanto um gato sapateava sobre o teclado.

Não é que esteja ruim, está inadmissível. O roteiro não tem fecho, nem exatamente linha narrativa. E por que diabos passei todo esse tempo no telefone se, espremido, isso não rendeu nem cinco mil caracteres?

“Por hoje, deu”, penso. Amanhã eu posso acordar e novamente fingir que tenho alguma ideia do que estou fazendo.

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Quando dou por mim, estou deitado na cama há mais de hora, olhando o teto. Não venci nem 15 páginas do livro.

Deve ter alguma coisa a ver com o fato de eu sentir o cérebro solto dentro da caixa craniana, deslizando de um lado pro outro como uma barra de sabão num piso liso e molhado.

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Quando dou por mim, estou assistindo a um game show de perguntas e respostas no YouTube e desproporcionalmente exasperado com o responsável pela formulação dos enunciados.

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Quando dou por mim, lembro que ainda preciso tomar banho.

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Quando dou por mim, estou torcendo para que aconteça de uma vez. O pior é a expectativa, a tensão, é viver com os ombros retesados – como quem passa a vida inteira esperando uma pancada.  

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