Um cadáver não vinga as injúrias

O Brasil sempre foi isso aí mesmo, essa esculhambação homicida. Lá por 2009, nós – e boa parte do mundo – alucinamos: achamos que, de uma hora pra outra, este país tinha uma chance de dar certo. Na capa da Economist, o Cristo Redentor virou um foguete. “Brasil decola”, diziam os gringos. Parece que foi há umas três ou quatro eras geológicas, mas não faz tanto tempo.

Quando o Terceiro Mundo faz planos, o passado ri. Porque não pode haver redenção sem a dura, áspera e incontornável jornada de reparação. Experiência própria, acredite. E o Brasil tem uma imensa ficha corrida pra acertar com o passado.

No meio da maior emergência sanitária em cem anos, uma epidemia global causada por uma doença nova e altamente contagiosa sobre a qual sabemos muito pouco, uma das principais medidas de prevenção é a cuidadosa higiene das mãos. Parece simples, mas no Brasil quase 35 milhões de pessoas ainda não têm acesso à rede geral de água. Muitas não têm sequer uma pia em casa.

Isso é uma dívida com o passado. E a fatura, agora, vai ser das pesadas.

Muito antes de o Cristo Redentor ameaçar decolar nós já tínhamos equipado a brigada de artilharia antiaérea que o derrubaria.

Enquanto você e eu alucinávamos, numa ingenuidade que beirava a burrice pura e simples, Jair Bolsonaro mascateava, esquecido, pequenas quinquilharias institucionais para sobreviver. E quem vive de vender bugiganga aprende a negociar focinheira com cachorro. A trapaça vira instinto.

Se a esculhambação homicida é o seu negócio, o Brasil é seu habitat natural. Num certo sentido, Jair Bolsonaro é a forma de vida que melhor se adaptou ao nosso ecossistema. Impermeável à racionalidade e até mesmo a sentimentos primários como a compaixão humana, atravessou as eras como mais um idiota inconveniente atravancando o caminho de quem precisava fazer o serviço. Era contornável, e foi ficando – ninguém dava atenção.

Quando enfim começou a chover fogo e a floresta foi calcinada, restou lá um traste preguiçoso, um paquiderme inútil, mas ainda vivo.

“Os homens esquecidos vingam-se do mundo olhando-o de cima para baixo”, escreveu Honoré de Balzac. Alçado por seus apóstolos à posição de general de uma guerra cósmica, as pequenas enganações diárias de Jair Bolsonaro passaram a exigir que todo um povo fosse encomendado para o sacrifício coletivo – e para ele, tanto faz como tanto fez.

Os cadáveres se acumulam? Os doentes morrem à mingua, em casa, sem atendimento? Os sistemas de saúde estão à beira do colapso? Os coveiros sucumbem à exaustão? A perspectiva da contagem de corpos é aterrorizante?

E daí?

Na próxima semana, quem sabe, Jair Bolsonaro poderá cuspir dentro de uma vala comum onde precários caixões se empilham. Ou talvez mais uma funcionária de supermercado com 25 anos possa ser morta à bala porque um homem sem o menor senso de coletividade – inflamado pelo discurso presidencial – acredita firmemente que paira acima de todo o restante da Criação.

Porque o Brasil sempre foi isso aí mesmo, essa esculhambação homicida. Só que nunca antes havíamos arrastado os mortos em praça pública, num espetáculo de zombaria presidencial.

O que dá pra fazer? No momento, pouco. Mas pouco não é nada. Estamos todos no mesmo barco, mas os porões do navio inundam antes. É preciso cuidar de quem está perto. É preciso ser solidário e estender a mão. É preciso segurar a cabeça e preparar as lágrimas. Será uma longa viagem no trem fantasma.

Mas quando um governo tem o nítido propósito de exterminá-lo, a obrigação moral de um povo é permanecer vivo. Os que ficarem por aqui tem um compromisso com os mortos, uma maneira de no futuro começar a quitar nossa dívida com o passado: puros, alegres e invencíveis, mijaremos sobre as sepulturas de todos aqueles que, podendo evitar o pior, preferiram zombar de uma vala comum.  

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