Tenha sempre uma rota de fuga. Se você for mulher, tenha duas

A amiga Fernanda Trisotto, que conheço há uns bons 15 anos, me escreveu na terça-feira passada. Ela tinha algo a dizer sobre o texto que publiquei aqui no Plural um dia antes, “Uma frase para minha lápide” – se você não sabe do que trata, veja lá, espalhe o Evangelho e me ajude a fazer fama e fortuna. Depois das piadinhas e esculhambações protocolares que caracterizam o início de nossas conversas, entrou no assunto:

“Eu sou mulher. Quando eu vejo dois bancos vazios no ônibus, eu sento no corredor instintivamente, porque sentar na janela significa bloquear minha rota de fuga de um possível homem folgado”, disse a Fer. “E homem folgado no transporte coletivo é o que mais tem. A começar pelos que fazem a viagem sentados e de pernas abertas, tão abertas que ocupam parte do espaço da poltrona ao lado.”

Ou seja, a cortesia da Fer em suas viagens de ônibus está subordinada a uma coisa maior. Antes de mais nada, ela prefere garantir que conseguirá escapar de um eventual assediador.

Faz sentido, e se não pensei nisso antes é porque, apesar de querer parecer altruísta e magnânimo na página do jornal, sigo com a canhestra tendência humana de orbitar exclusivamente em torno de meu umbigo.

Fui checar algumas pesquisas. A primeira delas, realizada pela Rede Nossa São Paulo e divulgada em março deste ano, mostrou que 44% das mulheres da capital paulista consideram que é no transporte coletivo que ficam mais vulneráveis a abusos. Só muito depois vêm a rua (23%), os bares e casas noturnas (11%), os pontos de ônibus (4%), o ambiente familiar (4%), o transporte particular, como o Uber (4%), e o trabalho (6%). Não souberam ou não responderam 6% das entrevistadas.

Em junho, uma outra pesquisa, dessa vez dos Institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, constatou que 97% das mulheres entrevistadas já sofreu algum tipo de assédio em meios de transporte como o ônibus, o táxi ou os carros de aplicativo. Dessa vez, foram ouvidas passageiras de todas as regiões do país.

Não encontrei nenhum levantamento desse tipo especificamente sobre Curitiba (alô, prefeito!), mas não me parece haver alguma razão para se considerar que por aqui a coisa vá melhor. Em 2018, a Guarda Municipal registou 63 casos de assédio no transporte da capital.

Não lembro de já ter presenciado algum caso de abuso dentro de um ônibus, mas o relato da Fer é a prova de que a culpa é exclusivamente minha, que deveria prestar mais atenção nas coisas. Quase sempre, quando pego o Barreirinha-Guadalupe ou outra linha qualquer, entro imediatamente no modo avião, minha cabeça viajando na maionese de um podcast qualquer.

Mas na rua, já vi vários. O último aconteceu há poucos meses, quando a Vanessa e eu caminhávamos para encontrar alguns amigos e beber cerveja em um bar do centro da cidade. A noite tinha acabado de cair, e um sujeito zuniu pela gente de bicicleta:

– Sortudo você, hein, cara? – foi a única coisa que eu pude ouvir.

Quando consegui me virar, ele já estava desaparecendo de vista. Não sou exatamente um camarada pequeno, mas me senti desarmado, assim como a Vanessa. O que ela e eu poderíamos fazer? Pegar um patinete elétrico e caçá-lo pelas ruas da cidade? Entrar em um táxi e dizer: “siga aquele idiota”?

Mais tarde, ela me explicou:

– Se você não estivesse comigo, aquele cara provavelmente tinha me dado mais trabalho. Como estava, ele só passou correndo de bicicleta e disse uma merda.

Não parece ser fácil, a vida do mulherio.

Em 2013, o vereador de Curitiba Rogério Campos (PSC) quis resolver o problema do assédio no transporte público da capital criando uma frota de ônibus exclusiva para mulheres, e pintando os veículos de cor-de-rosa. Não duvido da boa intenção do vereador à época, mas é como já escreveu o indomável H. L. Mencken: “Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada” – frase que, acho eu, deveria ser pichada em letras estonteantemente grandes em cada prédio do Poder Legislativo deste país.

A ideia era estúpida não apenas por questões técnicas (a frota exclusiva prevista no projeto nem de longe daria conta da demanda), mas também porque acabaria funcionando como uma espécie de trapaça retórica: se as mulheres em teoria tivessem à disposição um ambiente seguro, o próximo caso de assédio fora da frota exclusiva seria encarado como culpa de quem optou pelo ambiente “não-seguro”. O que ela estava fazendo lá, afinal?

É uma lógica bruta. Não se troca liberdade por segurança, não se coloca isso na mesa de negociação.

Em 2014, a então gestão de Gustavo Fruet (PDT) lançou uma campanha para estimular as denúncias de assédio no transporte de Curitiba. À época, pareceu funcionar, e as notificações subiram mais de 50%.

Você provavelmente se lembra dos cartazes amarelos espalhados pelos ônibus, com modelos simulando a pose de “Rosie, a operária”.

Em 2017, a gestão de Rafael Greca (DEM) anunciou uma revisão do programa e – bem, provavelmente eram muitas páginas, porque estão revisando até hoje.

Enquanto isso, mulheres seguem estabelecendo suas rotas de fuga. E se a Fer precisa se sentar no corredor para se sentir mais segura, que seja. Nesse caso, não convém falar de cortesia social. Quando te prendem numa armadilha, você tem um único dever, e é para com você mesmo: dar um jeito de cair fora dali.

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