Rafael Greca, prefeito da Escandinávia

Nunca é tão assustador quanto parece, especialmente se você fechar os olhos. E, embora eu quisesse ter a capacidade de fazer soar um tonitruante alarme para despertar – pelo menos – a cidade em que vivo, isso está muito além das minhas possibilidades. Quem pode fazer isso é o prefeito. Eu e o prefeito dispomos de forças no mínimo, vamos dizer, hum, desproporcionais. De modo que também não posso segurá-lo pelos ombros e exigir que deixe de ser ridículo.

Na segunda-feira, 4 de maio, Rafael Greca foi ao Twitter – e quando um político brasileiro vai ao Twitter, a Peste esmerilha as garras. O prefeito postou um vídeo de 24 segundos, mostrando a fila numa agência da Caixa Econômica Federal no Sítio Cercado. Pelo enquadramento de um celular, avaliou que a situação estava perfeitamente sob controle. E comentou:

“Esta é a forma curitibana de contenção e atenuamento da crise sanitária. Seguimos o modelo sueco, recomendado pela OMS, não fizemos lockdown, apostando na inteligência das pessoas.”

Eu aposto em uma galinha numa corrida contra um guepardo, mas não aposto na inteligência das pessoas.

O modelo sueco é incerto. Até agora, o país registra proporcionalmente o maior número de mortes na região da Escandinávia, e não há medição segura para estimar em que estágio a epidemia anda por lá.

Ele também não foi exatamente “recomendado pela OMS”. A fala completa do diretor da Organização Mundial da Saúde, Michael Ryan, explica que, ao contrário de algumas percepções, os suecos não deixaram simplesmente o coronavírus se disseminar: “O país criou uma política pública muito dura de distanciamento social baseada em cuidar e proteger pessoas internadas. O que houve de diferente foi a confiança na cidadania e a habilidade individual dos cidadãos de se imporem o distanciamento social e os devidos cuidados”, esclareceu.

Por mais que isso possa ser duro – o equivalente a cravar uma estaca no coração do curitibano médio –, Curitiba é substancialmente diferente da Escandinávia e, por consequência, da Suécia. Lá, de acordo com as autoridades locais, o número de suecos que viajaram no feriado da Páscoa, por exemplo, foi 90% menor do que o registrado no ano passado.

Por aqui, segundo uma matéria publicada pelo próprio Plural, a descida para as praias no feriado de Tiradentes foi comparável à de 2019. Em Guaratuba, teve até quem saiu na mão com um fiscal da orla, que tentava garantir que ela seguisse interditada.

Nem ao menos estamos conseguindo impedir que um grupo vulnerável, os idosos, circulem cada vez mais no transporte coletivo. A cada dia que passa nossos velhinhos sentem mais e mais a urgência irrefreável de pegar um ônibus para resolver qualquer coisa na lotérica.

No último fim de semana, pipocaram nas redes sociais imagens de bares lotados e até mesmo vídeos de uma “festa clandestina” abarrotada, promovida por um dos proprietários de uma casa noturna de ricaços. No perfil do empreendimento no Instagram, o mascote fofo e bonitinho aparece de máscara. Na festa produzida pelo empresário, ninguém está devidamente paramentado – na verdade, tem até um sujeito só de cueca – ou respeitando qualquer distância de segurança, contrariando frontalmente a resolução do prefeito Rafael Greca e, de quebra, seu “modelo sueco”.

Não sem razão, sempre se falou no Brasil sobre uma “epidemia de violência”. No ano passado, o Brasil registrou 41,6 mil homicídios – sem contar as mortes provocadas por policiais. O que dá uma média de 114 mortes por dia. Escrevo este texto no sábado à noite. Os números de mortes no Brasil por covid-19 acabam de ser atualizados: contamos 730 cadáveres nas últimas 24 horas. E isso de acordo com os números oficiais, que a essa altura do campeonato até os nossos cães de rua suecos sabem que são uma fraude.

No Ministério da Saúde, técnicos projetam que o próximo estado em situação crítica por conta da epidemia estará na nossa vizinhança: Santa Catarina, onde o comércio está sendo progressiva e arbitrariamente reaberto.

Quatro dias antes de Rafael Greca ir ao Twitter para se vangloriar da versão curitibana do “modelo sueco”, a secretária de Saúde da cidade, Márcia Huçulak, durante uma live transmitida pela própria prefeitura de Curitiba, disse: “Não é porque tem leito, que a nossa taxa de ocupação varia de 40 a 50%, digamos assim, dos leitos covid, que as pessoas podem sair. Se nós tivermos um pico, como a gente observou de ontem pra hoje, se continuar subindo 40, 50 casos por dia, com quatro óbitos, nós teremos colapso do nosso sistema de saúde, nós teremos problemas sim”.

E ainda completou, mandando um recado meio premonitório para a high society curitibana: “Moçada, não está permitido jogo de futebol, não está permitido fazer muvuca, rave, balada, barzinho. Ninguém quer ficar numa situação similar a Manaus. Quem tem dúvida, assista à tristeza, à dor das famílias em um momento como esse”.

Por mais que isso possa ser duro – o equivalente a cravar uma estaca no coração do curitibano médio –, Curitiba ainda pertence ao Brasil. Não é uma cidade-Estado fortificada e isolada do restante desse território inóspito e selvagem.

Pode ser reconfortante olhar para o Norte do país, essa região historicamente largada à própria sorte, essa gente que historicamente deixamos a deus-dará, e imaginar que uma vala comum jamais precisará ser aberta aqui, no nosso enclave escandinavo. A soberba precede a ruína.

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