Piquenique marciano

Marte, o sanguinário deus da guerra, tinha dois filhos: Fobos (“Medo”) e Deimos (“Terror”). Na mitologia, os três presidiam com dor, loucura e agonia as batalhas entre os homens, petiscando os momentos decisivos de carnificina como quem assiste ao duelo final de um filme de faroeste.

Quando os astrônomos emprestaram os nomes dessa pequena família de psicopatas para batizar o quarto planeta do Sistema Solar, e suas duas luas, na certa não estavam pensando que aquela seria a região mais apropriada da Via Láctea para no futuro fazer um piquenique.

Estavam corretos. Marte é um deserto, gelado como os olhos de Lee Van Cleef, com temperaturas que chegam a -150º C. Suas tempestades de areia duram meses. Ali está o maior vulcão de que temos notícia, com três vezes o tamanho do Monte Everest.

Mesmo assim, mais dia, menos dia, é em Marte que vamos estender nossa toalha, para servir uns comes e bebes. Atualmente, onze missões, entre sondas e simpáticos robozinhos com rodas, estudam sua atmosfera e seu solo, a fim de preparar o terreno para o nosso futuro e triunfal desembarque. Nos cálculos da Nasa, se eu não morrer de forma repentina, conseguirei ver os primeiros humanos descendo no Planeta Vermelho.

A última missão a estacionar em Marte foi a Perseverance, há poucos dias. Está atrás de resquícios de vida microscópica. Há milhões de anos, dizem os cientistas – que entendem do riscado –, Marte foi um ambiente mais aprazível, capaz de abrigar o início de alguma coisa, qualquer coisa, não temos ideia do quê.

Na mitologia, desejar a vida eterna sempre foi má ideia. A coisa sempre acabava em algum tipo de maldição. Mas a finitude também traz seus prejuízos. Me ressinto do fato de que não viverei o suficiente para ver foguetes tripulados partindo da Terra para colonizar o espaço. Quer dizer, isso se tudo não terminar antes, por aqui mesmo, em implacável peste ou hecatombe nuclear. De um jeito ou outro, perderei um grande show de fogos de artifício.

Não preciso me esforçar para imaginar a chegada do homem a Marte. Alguém muito melhor fez isso antes de mim. Foi Ray Bradbury, o mais poético dos escritores de ficção científica, em As Crônicas Marcianas, um livro que começa engraçadíssimo e vai ficando terrivelmente melancólico – mas até isso acontecer, ele já te pegou, e você é um caso perdido.

A coletânea de contos fantasia as mais piradas situações de uma eventual colonização de Marte pela raça humana. Nos primeiros textos, por exemplo, tentamos nos anunciar solenemente aos vizinhos planetários, mas somos completamente ignorados, porque eles no momento têm mais o que fazer, estão ocupados lá com as suas coisas. Em outro, nossos pioneiros astronautas vão todos sendo atirados em um manicômio, porque estão dizendo muitos disparates. Minha história preferida, contudo, está mais adiante, na parte melancólica do livro. (O que posso fazer? Sou um homem dramático.)

Em “Usher II” – uma referência direta a Edgar Allan Poe –, Bradbury fala de censura e vingança. Em um futuro nem tão longínquo, depois de os entendidos terem banido da Terra qualquer literatura que não fosse suficientemente edificante, um homem constrói em Marte uma casa mal-assombrada, repleta de armadilhas inspiradas em clássicas histórias de terror. Para lá, ele atrai todos os responsáveis pela dizimação da arte e da imaginação humana em seu planeta natal, e eles vão morrendo um a um, porque, burros, são incapazes de antever as arapucas.

Se você tem uma conta no Twitter, aquela rede repleta de policiais da moral dispostos sempre a colocar o dedo na sua cara ao menor deslize da linguagem, decidindo o que você pode ou não dizer, o que é “correto” e o que é desprezível, perceberá que essa história poderia ter sido escrita na semana passada. Na verdade, foi publicada pela primeira vez no ano de 1950. Escritor de estatura, Bradbury era um clarividente. Ele sabia.

Viver em Marte, cara. Parece um sonho.


Para ir além

Minha carne é cartorial, meu coração é igual

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima