Olha, olha, olha, olha a água mineral

Ao contrário do que imagina aquele arremedo de forma de vida baseada em carbono que por ora ainda sou obrigado a chamar de presidente da República, Jair Bolsonaro, eu estive nas manifestações do último dia 15 contra o corte de gastos nas universidades públicas federais e, por incrível que pareça, também conheço a fórmula química da água.

Não é das coisas mais complexas, e devo ter aprendido naquela fase do Ensino Fundamental que na minha época (pouco mais de três décadas sobre o globo e já preciso usar expressões como “na minha época”; o tempo, mano velho, é uma tirania) ainda era chamada de “ginásio”. São dois átomos de hidrogênio que se unem a um átomo de oxigênio por meio de ligações covalentes e, voilà, temos um solvente universal.

No entanto, é forçoso admitir, não me arrisco a ir sozinho muito além disso. Preciso recorrer ao Google, o oráculo dos obtusos, como eu, para reconhecer o real valor de uma garrafinha de San Pellegrino, a água com gás natural italiana que – aprendo agora – é tratada por quem entende do riscado como o “champagne das águas minerais” (ulalá!, isso parece bom).

Ainda pelo Google, chego ao site de uma “adega gourmet”, onde descubro que a fonte da água San Pellegrino está na cidade de San Pellegrino Terme, na região da Lombardia, os Alpes italianos. Começou a ser engarrafada em 1899 e, sempre de acordo com os entendidos, “década após década veio se consolidando como o marco de um estilo de vida pela quantidade equilibrada de gás e minerais e por seu poder de realçar a percepção dos sabores da culinária”.

Inegavelmente, parece bom.

Na galeria de apreciadores da San Pellegrino, propagandeia o site, estão a princesa Sarah Fergusson (não faço ideia de onde reine, mas prossigamos), os astros Elton John e Madonna, a atriz Elizabeth Taylor (espetacular sempre que revejo um de meus filmes prediletos, Gata em Teto de Zinco Quente), os atores Marlon Brando e Robert De Niro e o ex-líder soviético Mikhail Gorbatchov.

O último parágrafo me convence definitivamente de que a San Pallegrino é a melhor água do mundo, não tem pra ninguém. Mas, afinal de contas, por que estou eu aqui há seis parágrafos falando de água e enchendo a limitada paciência alheia?

A verdade é que estou um pouco decepcionado com o esforço de pesquisa do redator contratado por essa “adega gourmet” (não revelarei o nome do estabelecimento porque 1) não estou sendo pago para isso e 2) nem que estivesse). Tivesse ele se empenhado um pouco mais, descobriria que no rol dos admiradores da San Pellegrino, este “símbolo do estilo de vida italiano”, está o prefeito de Curitiba, Rafael Greca de Macedo, um excelente exemplo de bon vivant produzido pela política de nossa capital (embora a competição com o ex-prefeito e ex-governador Beto Richa tenha sempre sido um páreo muito duro).

Na semana passada, o vereador Professor Euler (PSD) levou à Câmara de Vereadores diversas notas de diárias bancadas por contribuintes de viagens do prefeito Greca e seus assessores. Nas notas das refeições, aparecia a água San Pellegrino, a R$ 28 a garrafinha. (Uma vez me cobraram R$ 5 em uma garrafinha d’água em uma banca de jornal em São Paulo e eu encarei aquilo quase como um insulto pessoal. Eu sempre soube que a capital paulista era uma espécie de distopia, mas jamais imaginei que a cidade chegaria tão rápido à fase Mad Max.)

Habituado aos salões luxuosos, o prefeito chegou a gastar R$ 800 em um almoço com mais dois assessores no Gero, um restaurante ligado ao grupo Fasano, também em São Paulo (vai ver, o problema é mesmo São Paulo). Tudo, naturalmente, pago pelos cofres públicos.

Diante de tantas notas, a assessoria de imprensa da prefeitura emitiu outra, dessa vez para rebater o vereador, argumentando que os gastos estão de acordo com a legislação. Estão, de fato. Mas em um país onde o salário mínimo é de R$ 998, onde 13 milhões de pessoas estão desempregadas e onde a qualidade de vida da população desce ladeira abaixo (basta você sair na rua e pegar um Uber para checar quantos engenheiros estão no momento dirigindo carros de aplicativos para conseguir alguma renda), é embasbacante que um funcionário público não veja problema em torrar R$ 800 em uma refeição para três pessoas (não fica muito longe dos membros do STF quando querem comer lagostas e beber vinhos premiados e uísque 18 anos às custas de um país que derrete a olhos vistos).

No caso de Rafael Greca, a coisa toda tem um agravante: ele é reincidente. Conforme lembrou o site Contraponto, capitaneado pelo jornalista Celso Nascimento, em 2009 o prefeito já havia sido pego em falta semelhante. À época presidente da Cohapar no governo de Roberto Requião, promoveu o que foi chamado de “farra do cartão corporativo” em mais restaurantes sofisticados (entre eles o Ile de France). Fez um acordo com o Ministério Público e devolveu R$ 55 mil aos cofres públicos em valores atualizados (em resumo, admitiu o erro, mas hábitos são realmente um troço difícil de mudar).

As pessoas obviamente precisam comer. Mas a aristocracia nacional não faz a mais remota ideia do lugar em que vive, e nem ao menos parece querer saber. Em janeiro, quando fui ao Parolin para fazer uma reportagem para este mesmo Plural sobre os custos da pobreza e as enchentes na região, mais de um morador reclamou do fato de o prefeito jamais ter pisado em uma daquelas casas, que rotineiramente ficam cheias de água, lama e ratos.

De fato, não é uma expedição tão agradável quanto um jantar em um salão requintado, mas é lá que o povo que, em campanha Rafael Greca prometeu servir, vive. Greca, no entanto, nunca quis ser o prefeito dos curitibanos, mas sim de uma parcela muito específica deles – a parcela que vive longe da “rataiada”, não anda dentro da própria casa com água até as coxas e bebe San Pellegrino.

Os R$ 800 da refeição luxuosa de Rafael Greca fariam alguma diferença se realocados para alguma política pública? É provável que não. Mas um insulto ainda é um insulto.

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