O que ainda pode ser salvo

Exasperado sob o sol de dezembro, larguei meus parcos 68 quilos à sombra, num dos bancos da Praça Santos Andrade. Eu precisava fazer hora até meu próximo e inadiável compromisso (cof, cof), num café não muito longe dali, mas naquele calorão a ideia de um ambiente fechado me dava ganas de distribuir petelecos nos atendentes. Então, apenas tirei da mochila Picnic de Abutres, uma investigação de Greg Palast sobre os “porcos do petróleo, piratas da energia e carnívoros da alta finança” e torci pro meu termostato interno parar de bancar o engraçadinho.

Naturalmente, em menos de dez minutos tentaram me vender alguma coisa. O sujeito tatuado tinha uns 40 anos, trejeitos da quebrada e o rosto de quem havia frequentado mais esbórnias do que o bom senso consideraria aceitável. Tinha, também, acabado de sair da cadeia, “ontem mesmo”, me contou. Taí, um tipo franco de camarada, pensei, tentando francamente me empurrar uma quinquilharia qualquer. Enfiei a mão no bolso do jeans, entreguei alguns trocados e fiquei com um pacotinho de balas.

A moça morena e fresca como uma maçã apareceu logo depois, numa saia longa, leve e florida, empurrando um carrinho de bebê e com um moleque a reboque, e sentou no banco ao meu lado. Fiz uma careta para o moleque, que devolveu uma risada, o que me convenceu a entregar pra ele o pacotinho de balas.

Voltei pro livro. Greg Palast me contava como a estupidez ambiental e devastadora do Exército Americano criou, em 2005, uma espécie de “estrada para furacões” que conduziu a bomba climática do Katrina do oceano direto para a região metropolitana de Nova Orleans. E como, apesar de alertadas para os riscos, as autoridades deram de ombros, assobiaram e fingiram que não era com elas. O calorão ainda incomodava (por que eu não levantava e conseguia uma cerveja?), mas aquilo era interessante.

Não sou exatamente o mais vivido e experiente dos homens, mas quando uma coreografia como essa se desenrola na minha frente, faço uma vaga ideia do que pode estar acontecendo.

A estupidez é brutal, mas tem algo de fascinante, e deve ser por isso que nos empenhamos nela com tanta regularidade.

O marido – suponho – chegou depois, me cumprimentou com um aceno de cabeça e se pôs a brincar com o moleque. A certa altura, enfiou a mão no carrinho de bebê, tirou de lá algo que guardou no punho fechado, girou nos calcanhares e passou a coisa para o sujeito que sapateava ali perto. Com a outra mão, com os dedos indicador e médio fez um movimento de tesoura e recolheu o pagamento.

Não sou exatamente o mais vivido e experiente dos homens, mas quando uma coreografia como essa se desenrola na minha frente, faço uma vaga ideia do que pode estar acontecendo.

Olhei ao redor. Pessoas passeando com o cachorro, pessoas simplesmente passeando, um cara com uma bola, um casal de mendigos sentado na grama, o pipoqueiro, a fila para a roda-gigante de Natal, o sol refletido nos pequenos gêiseres do chafariz. Na Alfredo Bufren, os carros enfileirados esperando o sinal abrir. Bom, pensei, se o Fernando Francischini não aparecer, ficaremos todos bem.

Vinte minutos depois, me convenci a conseguir aquela cerveja. Levantei, sorri para o moleque, que agora me devolveu uma careta (precisamos melhorar nossa comunicação) e saí andando, pensando em The Wire.

The Wire é uma série policial seca, realista e amoral que se passa numa Baltimore chapada e armada até os dentes. Sem heroísmo ou vilania, mostra apenas “o jogo”, a maneira como policiais e traficantes se engalfinham num ecossistema violento.

Na terceira temporada, o Major Colvin, prestes a se aposentar e sem muito a perder, está pressionado a reduzir os índices de homicídio no seu distrito. Ele também não suporta mais as batidas nas esquinas, os tiroteios, os cadáveres jovens se empilhando, seus policiais frustrados e se suicidando pouco a pouco pelo método ancestral do alcoolismo. Colvin decide, por conta própria, “legalizar as drogas”, e cria áreas livres para o comércio de narcóticos. “Fiquem aqui e não serão perturbados”, negocia com os traficantes. “Vendam suas coisas, ganhem dinheiro como nunca, eu não quero saber. Só quero salvar o que ainda pode ser salvo.”

Salvar o que ainda pode ser salvo. Talvez fosse uma boa ideia.

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