O perfeito manual do suicídio

Os japoneses acreditam que existe uma maneira correta para se fazer tudo na vida. Ao contrário de mim, que acredito perfeitamente que posso montar um guarda-roupa sem olhar o manual (e depois acabo meio abobalhado com um punhado de parafusos sobressalentes nas mãos), os japoneses têm um profundo respeito pelos livros que ensinam “como fazer”.

Na verdade, “profundo respeito” é bondade da minha parte. É mesmo uma obsessão por seguir as regras, o que mesmo assim nem sempre rende os melhores resultados. Hoje o vocabulário japonês já incorporou a expressão “shijimachi ningen”, que se refere aos “seres humanos de manual”, uma geração inteira incapaz de fazer qualquer coisa sem receber detalhadas instruções prévias.

Muitos manuais ocupam as listas dos livros mais vendidos no Japão. Eles ensinam você a fazer a declaração do imposto de renda no caso de ter comprado ou vendido ações, a adquirir terrenos, a levar uma mulher ao orgasmo com cunilíngua (esse realmente pode ser útil) e até mesmo a argumentar com um coreano.

Os coreanos são uma gente muito teimosa, dizem os japoneses. Tudo começou quando eles, os japoneses, invadiram a península do nordeste asiático, proibiram sua língua, violentaram suas mulheres, escravizaram seu povo e pra não perder a viagem usaram os prisioneiros de guerra como cobaias. Os coreanos se ressentiram. Até hoje, reclamam. Os japoneses encaram tudo como birra de coreano.

Em algum lugar de seu íntimo, no entanto, eles sabem que os coreanos têm razão, do contrário o Ministério da Educação japonês não teria feito historicamente tanto esforço para excluir esse período pouco edificante dos livros que alimentam o sistema público de ensino.

Os manuais japoneses também te ensinam a morrer, e a morrer de forma deliberada. Até há poucos anos, pelo menos um desses tutoriais era figura constante nas listas dos campeões de vendas. O Perfeito Manual do Suicídio é um livro técnico, sem discussões morais. O autor pressupõe que você já tenha pensado a respeito.

Na obra, diferentes formas de tirar a própria vida são analisadas e destrinchadas em seus prós e contras. A eletrocussão, por exemplo, é considerada limpa, barata, rápida e indolor. Quando feita da forma correta, também danifica pouco o corpo, o que vai te proporcionar um velório mais agradável, com caixão aberto. Pelo menos, é o que diz o manual. Não recomendo a ninguém tirar a prova.

O suicídio pode ser um tema espinhoso no Brasil, mas não no Japão, onde um livro como O Perfeito Manual do Suicídio circula livremente e sem causar muita comoção.

O autoextermínio é a maior causa da morte de jovens japoneses. Em 2018, o número de casos atingiu o pico em três décadas. Uma possível explicação é que um jovem no Japão está às vésperas de um rito de passagem excessivamente importante: os exames de admissão na universidade. Lá, a faculdade em que você consegue entrar praticamente determina o resto da sua vida. Um passo em falso e você está fora do jogo, acabado. Talvez eu também me sentisse pressionado a tomar uma atitude drástica em uma sociedade tão perfeccionista.

Em O Perfeito Manual do Suicídio não há nenhum capítulo destinado à burrice, o que considero uma falha grave para um livro que se pretende tão completo. A burrice pode não ser o método ideal de autoaniquilação, o jeito mais delicado de chamar o garçom – faz uma sujeira danada e causa sofrimento desnecessário –, mas tem lá as suas vantagens. A principal delas é você se matar sem se dar conta de que está se matando, o que evita longos e aborrecidos debates carregados de cristianismo.

Uma versão brasileira de O Perfeito Manual do Suicídio precisaria ter um ou dois capítulos sobre a burrice. Exemplos de suicídio por burrice existem aos montes, mas nos últimos dias um me chamou a atenção, em Paranaguá. Quando em meio à maior crise de saúde em cem anos a população de uma cidade faz fila para receber um vermífugo, sem nenhuma evidência de que esse remédio funcione contra uma doença nova e altamente contagiosa – e ainda contrariando todos os protocolos sanitários que só faltam ajoelhar e pedir por favor pra você não causar aglomerações, facilitando a disseminação de um vírus mortal –, esse me parece um caso lapidar e altamente eficaz de suicídio comunitário por burrice – e, o melhor de tudo, você nem precisa lidar com a ideia.

O suicídio no Brasil pode ainda ser um tema tabu, mas continuo sem entender os motivos. O suicídio por aqui é esporte nacional, é o que fazemos historicamente. Plenos, felizes e convictos, nós nos matamos.  

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