O inimigo público número um

Rio de Janeiro, 1910: um marinheiro do Encouraçado Minas Gerais é visto subindo a bordo com duas garrafas de cachaça. De acordo com as selvagens regras disciplinares impostas à época pela Armada – como então se chamava a Marinha – é condenado a 250 chibatadas. As brutais punições físicas eram rotineiras aos marujos – quase todos negros, recrutados à força, mal alimentados e com soldos irrisórios –, mas 250 chibatadas eram demais até para o couro curtido de um marinheiro do início do século. A tripulação se amotina e o capitão é morto. Liderados por João Cândido Felisberto, o Almirante Negro, os marujos tomam, além do Minas Gerais, também o Encouraçado São Paulo, e viram seus canhões para a cidade do Rio de Janeiro. Disparam. A população foge em pânico. Encurralado, o governo de Hermes da Fonseca proíbe os castigos físicos a bordo de navios e anistia os revoltosos.

Um mês depois, o indulto é traiçoeiramente suspenso. João Cândido Felisberto é atirado com outros 17 rebeldes em uma masmorra onde havia espaço para no máximo cinco. Três dias depois, quando alguém resolve abrir a porta, 16 haviam morrido por asfixia, e o Almirante Negro, um dos dois sobreviventes, dava sinais de perder a razão. O líder da Revolta da Chibata é então levado para um manicômio, e liberado alguns meses depois. Morre em 1969, na mais profunda miséria.

Região do Contestado, divisa do Paraná com Santa Catarina, 1912: a construção de uma estrada de ferro – que jamais seria concluída – ligando os estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo expulsa uma grande leva de posseiros e pequenos agricultores das terras que ocupavam, o que agrava o problema fundiário da região, que já era tensionado pelo conflito permanente entre coronéis da erva-mate e miseráveis. A massa de desvalidos passa a compor um movimento messiânico liderado pelo “monge” José Maria (na verdade, um andarilho monarquista e delirante), que fazia por aqui as vezes de Antônio Conselheiro. O movimento passa a estabelecer comunidades de subsistência, os chamados Quadrados Santos. Preocupado com a proliferação desse tipo congregação, o governo envia expedições militares para a região. Um exército esfarrapado e improvisado de 20 mil caboclos derrota ou neutraliza uma após a outra. Em 1916, a República perde a paciência e espalma a mão pesada: com forte artilharia e inclusive o uso de aviões para reconhecimento de terreno, arrasa o que encontra. Findo o conflito, milhares de sertanejos são executados. O período final da carnificina é tão feroz que alguns historiadores o chamam de “fase do açougue”. O saldo nos cemitérios até hoje é desconhecido. Estima-se que de 10 a 15 mil mortos.

Em minha estante, tenho guardada uma edição antiga da Revista de História da Biblioteca Nacional que traz um dossiê sobre a chamada Guerra do Contestado. O editor abre a carta de apresentação com a seguinte frase: “Não foi guerra, foi massacre”. Eu concordo com isso.

São Paulo, 1976: Manoel Fiel Filho não era um dirigente sindical relevante e nem passara perto de aderir à luta armada. Ainda assim, no dia 17 de janeiro, foi sequestrado por dois agentes da repressão em seu local de trabalho. Eles procuravam edições do jornal Voz Operária, do PCB, que algumas vezes Manoel ajudara a distribuir. Sem exemplares em casa que pudessem ser apreendidos, o metalúrgico foi arrastado para as dependências do DOI-Codi do 2º Exército, onde morreu sob tortura. A versão oficial da ditadura simulou um ridículo suicídio. Dois meses antes, no mesmo local e sob as mesmas circunstâncias, eles haviam assassinado Vladimir Herzog.

Rio de Janeiro, 2018: Marielle Franco, vereadora negra eleita em 2016, é assassinada no centro da cidade dentro de um carro com quatro tiros na cabeça por mercenários – uma operação profissional. A atuação da parlamentar estava incomodando as organizações paramilitares que brotam do seio do Estado. Por meses, a investigação do crime gira em falso. O delegado do caso, Giniton Lages, é acusado de tentar forçar a confissão de um miliciano já preso para ocultar os verdadeiros responsáveis. Dois dias antes de o crime completar um ano, Lages prende dois assassinos profissionais, ex-policiais militares da ativa, que são denunciados pela morte. Na casa de uma pessoa próxima a um deles, são encontrados 117 fuzis (o que deve ser suficiente para derrubar um governo da América Central). Em coletiva, Giniton Lages diz: “Hoje não sabemos se havia mandantes”. Para ele, os assassinos podem ter agido sozinhos, por “sentirem ódio a políticas de esquerda” – como se alguém com meia dúzia de neurônios funcionando em estado aceitável pudesse acreditar que mercenários trabalham de graça. Um ano se passou, e o país ainda está muito longe de saber quem foram os reais responsáveis por barbarizar o Estado de Direito. A pergunta persiste: quem, afinal, mandou matar Marielle?

São Paulo, 1969: o guerrilheiro Carlos Marighella é morto por agentes da repressão em uma emboscada, quando estava desarmado. Após ser preso e torturado por duas ditaduras e ter tido um mandato parlamentar cassado mesmo em um suposto período democrático, ele aderira à luta arma e fora considerado pelo regime militar como o “inimigo público número um”.

Nada mais do que um golpe de retórica. No Brasil, o inimigo público número um são os sádicos tiranos que desde sempre controlam a estrutura de Estado, dispostos a esmagar qualquer um que resista a lhes beijar a mão.

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