O chapéu-mexicano

E de repente fui atirado de volta à Idade da Pedra. Àquela altura, eu ainda não havia lido sobre casas destelhadas, árvores arrancadas, gente morta e placas arrastadas pelo vento como tampinhas lambidas de iogurte. E como minha vida tem a irrefreável tendência de orbitar em torno do meu próprio umbigo, minha preocupação era a energia elétrica. Eu gosto muito de energia elétrica, considero a falta de energia elétrica um insulto pessoal.

Tive um amigo que não era assim tão entusiasta da energia elétrica. Não era bem um amigo, pra falar a verdade, era mais como um conhecido que eu encontrava com frequência alarmante. Ele tinha um plano que, se eu entendi direito na época, consistia em abandonar paulatinamente tudo o que o ser humano descobriu, produziu ou controlou a partir da Primeira Revolução Industrial. Queria fundar uma comuna agrícola, levantar com o Sol, viver da terra, coisas desse tipo.

Ele também vivia entrando e saindo de “fases místicas”. Em linhas gerais, uma “fase mística” queria dizer que ele estava se dedicando a fazer o rigoroso controle de qualidade de suas eventuais colheitas de cogumelos alucinógenos.

Eu nunca tive “fases místicas”. Eu gosto mesmo é de energia elétrica.

Na semana passada, sem energia elétrica por umas oito horas, apenas deitei na cama na escuridão e fiquei olhando o teto (quer dizer, eu não conseguia ver o teto, mas estou certo de que ele estava lá).

Pode ter sido o vento, provavelmente foi o vento, silvando lá fora a quase cem quilômetros por hora, fazendo a janela guinchar – lembrei do chapéu-mexicano.

O chapéu-mexicano é um brinquedo de parque diversões. É basicamente um cilindro que gira sobre o próprio eixo em alta velocidade e faz você voar pelos ares em frágeis banquetas conectadas por correntes à estrutura central.

Quando eu era moleque, de vez em quando um parque de diversões em ruínas aparecia na minha cidadezinha, lá no interior do Paraná. Eles tinham um chapéu-mexicano, ou pelo menos o arremedo de um chapéu-mexicano. Era obsoleto, roído, enferrujado, caindo aos pedaços, pronto pra patrocinar uma tragédia. Quando funcionava, a estrutura inteira rangia e tremia, como se estivesse morrendo de frio ou de medo, prestes a desmaiar. A única manutenção possível ali era negociar a venda com um dono de ferro-velho.

Eu não gostava do chapéu-mexicano, mas andava nele mesmo assim, apesar de minha mãe, que sempre foi uma mulher veemente, me proibir todos os dias de sequer chegar perto do chapéu-mexicano. Por que eu gastava os poucos trocados que ganhava dando voltas em um negócio de que eu nem gostava e que com certeza no fim do dia me traria problemas em casa? Não faço ideia. Eu era uma criança estúpida, pronta pra desabrochar em um adulto estúpido – um projeto que aparentemente deu bastante certo.

Nesse mesmo parque eu também perdia trocados apostando em uma barraquinha, tentando acertar em que número pintado na mesa um dado cairia. Eu definitivamente não fui uma criança prodígio.

O parque itinerante era montado sempre no mesmo espaço da cidade, o que parecia calculado para caso alguma corrente do chapéu-mexicano se rompesse você ser arremessado contra o enorme silo de um armazém agrícola (sim, a gente tinha esses armazéns bem no meio da cidade). Isso faria um adulto responsável precisar desgrudar o que sobrou de você com uma espátula.

Lembro vagamente da notícia de um previsível acidente com aquele chapéu-mexicano, em uma cidade vizinha, mas não posso dizer com certeza. Minha memória pode estar me traindo. Ou posso estar alucinando. Também não acho apropriado ligar pra algum amigo da época, alguém com quem eu não falo há quinze anos, só pra checar essa informação:

– Oi, cara. Beleza? Sim, sim, faz muito tempo mesmo. Um montão de tempo. Tempo pra caralho. Escuta: você lembra de alguém que morreu no chapéu-mexicano?

Passei a noite da tempestade pensando no chapéu-mexicano. Provavelmente foi o vento. Ou foi todo o resto. Alguma coisa está sempre prestes a se romper e te atirar contra o metafórico silo de um armazém agrícola. Meio que é a vida. 

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