O bom filho a casa torna

Como eu ia dizendo aqui neste Plural antes de ser rudemente interrompido por mim mesmo, lá em agosto, mais dia, menos dia 212 milhões de brasileiros acabarão cometendo suicídio coletivo por burrice, ao comando de algum macabro Jim Jones do Vale do Ribeira. Me parece um destino inevitável.

O parágrafo acima é uma paráfrase de Fausto Wolff (1940-2008), o grande e, na minha humilde e coitadinha opinião, subestimado escritor brasileiro, autor de um dos meus livros preferidos da literatura nacional, À Mão Esquerda.

Minha anedota preferida sobre Fausto Wolff fala da vez em que ele meteu na cabeça que precisava disputar um duelo de birita com um marinheiro sueco. Depois de uma noite inteira, o grandalhão escandinavo desabou quando o dia amanhecia. Wolff então se virou para a plateia e disse: “Muito bem, muito bem, agora vamos beber socialmente”.

Faz muito tempo, conheci um camarada que havia trabalhado com Fausto Wolff. Ele vinha do Rio de Janeiro, estava de passagem por Curitiba, não lembro a troco de quê. O bar no Largo da Ordem estava lotado, mas eram tempos em que não tínhamos preocupações sanitárias; se não havia espaço, você construía o seu espaço, nem que fosse na marra.

Batemos um longo papo, meio aos berros, brindamos várias vezes ao Velho Lobo, derrubamos cerveja um no outro e fizemos tamanha bagunça que precisamos nos desculpar repetidamente com o garçom por sermos uns grosseiros, uns selvagens, uns depravados.

Tenho o discernimento e o senso de planejamento de um camundongo que, dentro da gaiola, puxa a todo tempo a mesma alavanca, recebendo sempre a mesma descarga elétrica. Sempre perco tudo, nunca aprendi a guardar nada. Extraviei os contatos que o discípulo de Wolff me passou ao fim da noite. Nunca mais nos falamos.

Eu gostaria hoje de escrever a ele, jogar um pouco de conversa fora, como quem atira o próprio tempo pela janela. O que estaria dizendo Wolff diante do arremedo de Rafael Trujillo que agora ocupa a Presidência da República? Homem que escrevia em rajadas, dono de cultura inesgotável e de impressionante capacidade de trabalho, na certa cuspiria colunas como um lança-chamas cospe fogo, pregando seu comunismo irredutível, e garantindo a todos nós que “um povo não deveria admitir Justiça sem força, tampouco força sem Justiça”. Talvez eu estivesse um pouco mais otimista. Beberrões ao estilo de Wolff fazem falta.

A verdade é que de agosto até aqui pouca coisa, ou mesmo nada, mudou. Que em menos de um ano tenhamos conseguido produzir tantas vacinas eficazes é sem dúvida um triunfo da engenhosidade humana, uma vitória do nosso espírito de colaboração. É uma luz no fim do túnel, e chegou mais rápido do que qualquer um de nós poderia apostar no início da corrida.

Por quê, então, eu não estou mais tranquilo? Por quê, no máximo, estou mais cínico? As coisas não deveriam mais parecer tão difíceis. Um túnel não é um labirinto, e a partir do momento em que você viu a luz, basicamente só precisa seguir em frente. Mas a humanidade que promove o grande feito é também capaz da pior mesquinhez. Somos indubitavelmente grandiosos e irremediavelmente desgraçados. E enquanto alguns nos apontam a saída, outros continuam espalhando armadilhas para urso na escuridão.

Tente me pegar, filho da mãe. Eu ainda estou aqui, não estou?


Para ir além

O perfeito manual do suicídio
Os vivos e os mortos – principalmente os mortos

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