O amor distraiu-se

O céu está carrancudo, um reflexo do semblante nublado das pessoas embaixo – o tipo de solução barata que um escritor previsível encontraria; a vida também reza pela cartilha da má literatura.

A chuvinha que cai é fina, uma espécie de polvilho d’água. O rapaz olha aquela enorme estátua de concreto de um homem nu sem genitália, aquela gigantesca ideia de castração plantada bem no centro da cidade, aquele monumento à infelicidade.

O rapaz não sabe, mas enquanto ele cruza a Praça 19 de Dezembro, uma moça ruiva começa a descer a Rua Riachuelo, na maior velocidade que seus saltos altos permitem. O chuvisco faz com que as mexas vermelhas coladas a seu rosto lembrem filetes de sangue.

Quando vence a praça, o rapaz, na sua impaciência, cruza a rua com o sinal ainda fechado, correndo; por um triz não vira uma massa disforme de ossos, músculos, nervos e sangue quando um Vectra 1998 passa por ele zunindo, um dardo de prata.

– Filho da puta! – grita, mas o cara do Vectra não ouve nada, por dois motivos: 1) já está longe; 2) meteu a mão da buzina, que soou como se fosse a primeira das sete trombetas anunciando o Apocalipse.

Em uma esquina pouco mais acima a moça para, contrariada – a chuva vai engrossar? –, para esperar o sinal de pedestres abrir. Apressada, fica batendo com o sapato no limiar da calçada. Olha o relógio de pulso – é do tipo que ainda usa relógio de pulso. São 18h12. Ela tem três minutos para percorrer as centenas de metros que faltam até o ponto de ônibus do Passeio Público, pagar o cobrador, receber o troco e embarcar no Expresso.

E isso se der a sorte de que na sua frente não esteja nenhum passageiro mortalmente atrapalhado no processo de vasculhar os bolsos, a complexa tarefa de encontrar lá dentro o exato dinheiro da passagem, minuciosamente contado em moedas de dez centavos – só que espalhado por toda parte.

São 18h12, ainda. O sinal não abriu. A moça continua parada, a bater com o pé no meio-fio, mas outras milhares de pessoas neste instante estão se movendo por toda a parte da cidade, saindo do trabalho, fazendo pequenas e rápidas compras para o jantar, encontrando-se por acaso.

O Acaso, uma instituição invisível da qual só percebemos o resultado do trabalho, como se o Acaso fosse um anjo da guarda ou um funcionário de cartório, daqueles que só fazem carimbar papéis, mas que quando faltam transformam a tarefa mais simples e burocrática num esforço hercúleo, um exercício de paciência capaz de transformar um monge no protagonista de “Um dia de fúria”.

Milhares de pessoas – talvez centenas de milhares – estão agora por conta do Acaso, enquanto a cidade se encaminha para a Unidade de Tratamento Intensivo, com um porrilhão de carros se amontoando em cruzamentos, como se fossem moléculas de gordura trans prontas a levar o sistema circulatório de um organismo ao colapso.

Alheio a isso, o rapaz sobe a Rua Riachuelo, olhando o mundo por trás de seus óculos de grau. Ele tira a carteira de cigarros do bolso do jeans, leva um à boca e, com a mão esquerda em concha à frente da chama do isqueiro, tenta acionar a pequena bomba de nicotina – em vão. O vento é agora um radical militante antifumo. Uma, duas, três. Após a quarta tentativa, adianta-se para abrigar a chama do vento na porta de uma loja de móveis usados.

A moça de saltos altos passa, apressada, sem nem ao menos desconfiar que o sujeito que está ali de costas lutando com um isqueiro é o mesmo cara com quem ela conseguiu trocar apenas poucas palavras – uma pena –, em um bar, na noite anterior. Interessantíssimo ele, por sinal, ela pensa, enquanto aperta o passo. São 18h13.

O acaso fez sua parte, anjo e funcionário diligente. Mas o amor distraiu-se.

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