Homo Docilis

Assim que entrei no carro, reparei na televisãozinha instalada no painel, que transmitia um combate de MMA. O motorista contou que também luta MMA, inclusive foi campeão paranaense, disse. Passou por poucas e boas, cortou um dobrado, se lesionou e uma época foi parar na faca. Mesmo assim, ainda luta MMA. Pra desespero da mãe.

Versátil e multifuncional, enquanto nos relatava toda a sua via-crúcis de estapeamentos e pancadaria, dirigia pelas ruas da cidade em pleno sábado à noite ao mesmo tempo em que tentava fazer funcionar as pequenas telas que ficavam atrás dos bancos dianteiros. Fazia questão que pudéssemos assistir ao desenrolar dos acontecimentos no octógono o mais confortavelmente possível, talvez pra que absorvêssemos todo o seu amor pelo esporte.

Eu poderia ter observado que aquela divisão de atenção era o caminho mais rápido pra que dessa vez fôssemos todos parar na sala de cirurgia, mas, sabe como é, ele luta MMA, e eu devo ter entrado na minha última briga de bar há mais de dez anos. No caso de traumatismos cranianos, é conveniente trocar o certo pelo duvidoso.

Permaneci inteiro o suficiente pra no dia seguinte embarcar em outro Uber, dirigido por outro motorista que, vejam só, também tinha treinado MMA.

Entre uma viagem e outra, ouvi um episódio do podcast Rádio Escafandro, que apresentava justamente – esse negócio está ficando inacreditável – a história de um lutador de MMA. Um garoto doce, que preferia a companhia das meninas a dos meninos, que cresceu e virou um “ursinho carinhoso”, mas que mesmo assim não apenas subia em ringues disposto a fazer um semelhante sangrar como se tornou policial militar, rodeado por dilemas éticos como uma lâmpada é rodeada por insetos. O episódio ainda resumia várias passagens do livro Homo Ferox: As Origens da Violência Humana e o Que Fazer Para Derrotá-la, do jornalista Reinaldo José Lopes. Você acreditaria se eu dissesse que esse é o livro que estou lendo?

Estou absolutamente convencido que tantas coincidências empilhadas num único fim de semana equivalem ao Senhor, em seus desígnios insondáveis, me dando um tapão na nuca e orientando: “Ô, maluco, tu tá sem tema mesmo, não tá? Escreve sobre isso aí”.

Tenho más notícias. Aparentemente, nossa tendência a partir a cara uns dos outros remonta ao tempo em que ainda nos organizávamos em bandos de caçadores-coletores. Nossos parentes mais próximos na árvore evolutiva, os chimpanzés, também lutam entre si, no que poderíamos chamar de guerra de guerrilha, ofensivas feitas de emboscadas, patrulhas e ataques-surpresa, destinadas a roubar fêmeas e conquistar território.

No nosso galho, as coisas começaram a crescer em proporção há mais ou menos dez mil anos, com o advento da agricultura. Mais comida significava poder alimentar mais gente, que significava ter maior contingente pra se apossar de terrenos maiores pra plantar mais comida. Dessa forma, criamos reinos que sustentaram exércitos e foram pro pau.

Essa escala mortífera alcançou o seu auge no sangrento século 20, com suas duas Guerras Mundiais. Ao mesmo tempo, foi a partir daí que uma luz similar ao alarme de um submarino nuclear começou a piscar dentro de nossas cabeças de macaco. Estávamos rapidamente nos encaminhando pra uma possível autoaniquilação.

Há quem goste de chamar o período a partir de 1945 até agora de Longa Paz. Faz sentido. Embora continuemos nos matando com bastante frequência. As guerras de grandes proporções, entre grandes potências, praticamente desapareceram, e o fortalecimento das democracias é o principal ingrediente dessa receita que parece o meu frango ao molho de alho-poró (deu mais ou menos certo).

O que teria a dizer sobre isso o agora deputado cassado Fernando Francischini? Um dos principais responsáveis pela porradaria do Dia 29 de Abril, o delegado durão – que matava, picava e comia com farinha, apoiador de primeira hora de um presidente autoritário e violento – até que reagiu de forma dócil quando uma instituição enfim resolveu fazer algo a respeito.

Até que esse negócio de democracia funciona mesmo, quando quer.

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