Dezembro é o mais cruel dos meses

Eu nunca ofendo ninguém, exceto em dezembro.

Em dezembro eu ofendo senhoras. Especificamente, as senhoras que aparecem na minha TV durante o jornal do meio-dia, enquanto almoço com o prato apoiado no braço do sofá.

Não é que eu queira me gabar – um marmanjo de 32 anos xingando velhinhas, já se viu? –, mas os fatos são os fatos. Dezembro destrói o esforço que faço durante todo um ano para enterrar minha incivilidade.

Na TV, uma senhora grã-fina com muito mais plásticas do que ela jamais poderá justificar está explicando como aquele grupo que reúne outra dúzia de senhoras grã-finas devidamente plastificadas salvará o ano de crianças atiradas à brutalidade da miséria com meia dúzia de bonecas e bolas de futebol.

Filantropia não tem a ver com solidariedade, tem a ver com relações públicas. E o desprezo que sinto por tudo o que faz a nossa high society ficar melhor na foto se acende dentro de mim como a decoração de Natal do Palácio Avenida.

Perco o controle, praguejo contra a senhora diante do microfone e contra toda a sua descendência. Percebo a solar idiotice daquilo e retomo o domínio sobre mim mesmo. Mudo de canal.

Sou um rabugento. Um rabugento jovial – se é que isso é possível –, mas ainda assim um rabugento. Em dezembro, principalmente. Em dezembro eu ofendo pessoas pela TV. Ergo o punho e vocifero contra a tela, como o Vovô Simpson brigando com uma nuvem.

O problema é dezembro – ou não.

Inevitável, em dezembro todo mundo faz o seu balanço anual. Inevitável, constato que o que não piorou segue no mesmo vinagre. A depressão, a lassidão e a fraqueza de vontade me acertam como um tijolo. Não há consolo possível no Terceiro Mundo.

Penso que deveria sair para beber com os amigos. Beber em quantidades exageradamente boas. Pelo amor de Deus, tenham a santíssima paciência, um homem que descobre que depois de 12 meses tudo terminou no mesmo vinagre tem o inalienável direito de tomar um porre.

Devia constar na Constituição, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Convenção de Genebra, nas Tábuas da Lei que Moisés recebeu no Monte Sinai.

Esqueço a saída com os amigos. Me apoio no balcão de sempre, com a bebida de sempre, trocando meia dúzia de palavras com a senhorinha do outro lado, como sempre. Ela está perfeitamente habituada comigo, e eu com ela. Somos mais previsíveis do que o Natal. Assisto, sem prestar atenção, a um jogo de futebol aleatório na TV, como sempre. Ao fim de tudo, saio dali meio alto, como sempre. Circulo sem rumo pelo centro da cidade. Um pouco de conversa aqui, um trago ali. Pego o ônibus de sempre.

Uma coisa que dezembro não pode me tirar é a paz narcótica da rotina.

A bebida e a caminhada à noite me trouxeram algum ânimo. Lembro do que me disse um desconhecido há algum tempo, quando eu atravessava uma fase particularmente ruim: “As coisas mudam muito rápido”.

Uma tempestade muito forte se avizinha, acho que ninguém pode negar isso. Ela vai fazer qualquer coisa que a minha geração já viu virar uma nota de rodapé no futuro.

Mas por quanto tempo, afinal, tudo pode se manter tão ruim? “As coisas mudam muito rápido”, ele me disse. Não é fé, é estatística.

Caio na cama, um pouco chumbado. Não posso dormir. Devia ter tomado mais uma ou duas doses, para dar um empurrãozinho no processo. Tento ver um filme, mas não posso me concentrar. Pego o livro que está na cabeceira: Os Suicidas, de Antonio Di Benedetto. É bom, mas mesmo assim não posso ir adiante.

Capa do livro Os Suicidas, do escritor argentino Antonio Di Benedetto.

Repasso mentalmente os afazeres do dia seguinte: finalizar o roteiro, iniciar as pesquisas para o segundo capítulo do projeto que preciso entregar no mês que vem. Ligações a serem feitas, e-mails a serem enviados. O camarada por acaso toparia me dar uma entrevista? No horário mais conveniente, claro.

Escrever a coluna do jornal. A da última semana foi um pouco pesada, ela me disse. Tentarei uma coisa mais leve para a próxima segunda-feira, decido. Impossível. Dezembro é o mais cruel dos meses. O único conforto é que janeiro está logo ali.

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