Cada um por si e Deus contra todos

Se algum dia qualquer proposta generosa sair da Associação Comercial do Paraná, olhe para cima.

Do céu, despencará uma chuva de pedras, fogo e sangue; as águas do mundo virarão veneno; o Sol, a Lua e as estrelas se apagarão; o chão se rasgará, libertando uma nuvem sem fim de gafanhotos com couraças de ferro; e um exército de 200 milhões rugirá, liderado por generais que montam cavalos com cabeças de leão e rabos de serpente.

Amargaremos o Juízo Final.

Só que ninguém precisa perder o sono com isso. O maior prodígio de imaginação nas linhas acima é conceber que algum dia qualquer coisa que não soe como uma agressão sairá da Associação Comercial do Paraná.

Se em 2013 o consórcio fez uma intensa e bem-sucedida campanha para barrar o feriado do Dia da Consciência Negra, em 2020 a entidade pressiona o quanto pode as administrações públicas pela reabertura do comércio de rua no Estado, mesmo enquanto estamos prestes a atravessar uma emergência sanitária que o resto do mundo já provou ser a maior em 100 anos, desde a Gripe Espanhola de 1918-1920. Mais uma vez, consegue o que quer, porque conta com a lassidão e a fraqueza de vontade de Rafael Greca e Ratinho Jr.

Não é como se o presidente da Associação, Camilo Turmina, pudesse se fazer de desentendido. Ele sabe.

No início de março, Turmina declarou para a Gazeta do Povo: “Como as famílias não estão mais saindo de casa para comprar, estamos com as lojas de rua ‘às moscas’. Muitos estabelecimentos não têm nem mesmo uma arrecadação para pagar custo operacional de manter as portas abertas. Não faz sentido manter o comércio aberto, expondo milhares de pessoas ao perigo de contágio”.

No início de abril, depois de Jair Bolsonaro anunciar algumas medidas precárias para mitigar os efeitos da crise na economia, Turmina disse, dessa vez no site da própria Associação: “Com as medidas de preservação de emprego e renda dos funcionários e o maior prazo para pagamento de impostos acho que devemos esperar a liberação das autoridades sanitárias, seguindo as regras do isolamento social para preservar a vida de quem amamos”.

Soaria quase correto, se poucos dias depois ele não tivesse decidido se dedicar a expor milhares de pessoas a uma doença nova, altamente contagiosa e que pode ser fatal.

No momento, apenas um discurso deveria estar na boca das pessoas que nós, sabe-se lá sob o efeito de quantos narcóticos, decidimos chamar de “líderes”. Uma fala seca, sem panos quentes ou badulaques: viveremos tempos duros e todos estão em risco; será particularmente penoso para os mais pobres e vulneráveis; é dever do Estado brasileiro alimentar seu povo e ajuda-lo a completar essa travessia; não estará terminado quando a pandemia for controlada; sairemos dela com a economia em frangalhos, muitos de nós completamente falidos e sem perspectivas; mas ainda estaremos aqui, e o que foi quebrado poderá ser reconstruído.

Existe uma definição atribuída à antropóloga norte-americana Margaret Mead que diz que a civilização começou com solidariedade, quando alguém quebrou a perna e a tribo resolveu ficar para ajudar.

Não no Terceiro Mundo. Aqui, continua sendo cada um por si e Deus contra todos. Camilo Turmina pode disfarçar isso o quanto quiser em suas entrevistas televisivas, fingir que está tentando evitar o “caos social”, mas no fundo o que ele está fazendo é dar de ombros, para o bem dos negócios. Paciência. Quem ficar pelo caminho, ficou. É a lei da selva.

Em seu livro de memórias, Confesso que Perdi, o jornalista Juca Kfouri diz que aprendeu uma coisa durante a vida: não exigir sacrifício com o pescoço alheio. É uma boa lição.

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