Beatles vs. Rolling Stones

Paul McCartney ganhará uma estátua em Curitiba. E, ao que parece, não um busto qualquer, mas uma escultura de 1,87m, obtida a partir da argila do caudaloso Rio Iguaçu – e que ficará permanentemente na entrada de um bar, no centro da cidade.

Estou numa fase ermitão, então não conheço o Cavern CWB, onde McCartney em breve se instalará imponente, como um porteiro de terno, gravata e franja de barro na testa, mas sei que ele é inspirado no Cavern Club, de Liverpool, um dos primeiros palcos em que os Beatles pisaram.

Tampouco conheço o Cavern Club. Neste mundo, há uma imensidão de coisas que eu não conheço, e esse é um pensamento triste.

A informação sobre a estátua de Paul McCartney é quente, tal qual a arma da felicidade. Descobri lendo o jornal, na quinta-feira à noite, um respiro em meio aos cadernos de política do dia, que nos davam a medonha perspectiva de em breve ter nas livrarias uma nova obra poética de Michel Temer: A Balada do Cárcere.

A homenagem será instalada no sábado, 30, mesmo dia em que o último beatle vivo – o Ringo conta? – faz uma apresentação em Curitiba. E um dia depois do aniversário da cidade. Vai ser uma espécie, digamos, de presente para os curitibanos. O curitibano, todos sabemos, é um povo que se acha meio inglês, meio europeu, meio sir – se deixar, eles se perfilam no meio do Centro Cívico em uma terça-feira à tarde e entoam God Save the Queen.

Rivalizaremos, enfim, com o Cavern Club de Liverpool que, dizem, mantém uma estátua de John Lennon à entrada – não sei, não pude verificar; uma passagem aérea para Liverpool está pela hora da morte (e entre a imensidão de coisas que lamento desconhecer neste mundo, Liverpool não está no topo da lista). No dia 30, a esperança é que sir McCartney dê uma passadinha pelo centro boêmio da cidade a fim de abençoar a obra. Irá? Não irá? Não faço a mais pálida ideia.

Não sou, absolutamente, contra estátuas. Nosso prefeito mesmo, Rafael Greca de Macedo, resolveu colocar uma do filósofo Confúcio no meio de uma rotatória perto do Museu do Olho e vocês são prova de que eu jamais disse um “a” – mas já que estou aqui, e não sou homem de perder a viagem, confesso: de longe, ela me lembra um pouco o nosso alcaide. Agora a rotatória se chama Largo da China, “um presente do povo chinês”. Não creio que o povo chinês tenha sido consultado a respeito ou saiba apontar Curitiba no mapa. Se fosse, exigiria – com razão, como país mais populoso do planeta, segunda maior economia do mundo e nação a caminho de se tornar uma potência militar de primeira linha – algo um pouco maior do que uma rotatória.

Também não sou, absolutamente, contra os Beatles – exceto por essa inconveniente mania deles de quererem ser maiores do que os Stones. Entre os “rapazes de Liverpool” e os malucos que colocaram veneno nos anos 70, não tenho dúvida: ajoelho diante da missa negra de Exile On Main Street, e levanto saracoteando como um louco aos primeiros acordes da obscena, suja e dolorosa Rocks Off – uma abertura de disco que é quase uma declaração particular de guerra. Os Stones são como o Clash, como os Ramones, como o Who, uma britadeira sonora para a pedreira diária. Os Beatles são alguma coisa que toca ao fundo enquanto você almoça no restaurante por quilo ou come um pedaço de bolo em uma confeitaria. Não é ruim, mas falta o desespero, o arrebatamento. Os Stones tocam a partir das seis da tarde, na noite que se abre como um vórtice na escuridão, continuarão retumbando pelas horas e ainda estarão lá quando você contar os seus passos na calçada de volta pra casa – a melodia calma e autodestrutiva de Sister Morphine ressoando pela caixa craniana.

Em uma das lembranças mais estonteantes de minha vida, é noite e estou plantado no meio do gramado do Maracanã, cercado por milhares e milhares de pessoas. Na minha frente, aquele que talvez seja o maior espetáculo já produzido pelo homem: os Rolling Stones, ao vivo, cinco décadas de carreira nas costas, pulsando como uma taquicardia, a língua de uma víbora acariciando meu canal auricular. Naquela noite, por alguns momentos, a jaula cedeu, e as coisas que geralmente ficam no porão não estavam mais lá.

Grande show – mas isso faz tempo.

O que eu queria dizer mesmo hoje com essa história toda é que agora me vejo obrigado a abrir negociações com meu vizinho, PM reformado. O que será que ele acha de uma estátua de Keith Richards no portão do condomínio?

A guerra, crianças, está a um zap de distância.

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