Arquimedes de churrascaria

Arquimedes de Siracusa teve uma epifania quando, no século 3 a. C., entrou em uma banheira e se deu conta de que o volume de água que transbordava dela era igual ao volume de seu corpo. A partir disso, ele formulou a lei do empuxo e resolveu as suspeitas do sovina rei Hierão envolvendo uma coroa de ouro e um ourives trapaceiro.

Quem também teve uma epifania foi Isaac Newton, no século 17, ao ver despencar uma maçã, encucar com aquilo e começar a formular a lei da gravitação universal.

Em 1928, o pesquisador escocês Alexander Fleming, um pouco de saco cheio de tudo, tirou férias. Ele devia estar ansioso para ficar de papo pro ar, porque esqueceu algumas placas com colônias de bactérias em sua mesa de trabalho. Quando voltou, um fungo havia crescido nelas, e ele notou que próximo a ele as bactérias não se desenvolviam. Em vez de jogar tudo no lixo, Fleming teve a presença de espírito de investigar. Descobriu a penicilina.

O ator Rutger Hauer morreu na semana passada. Seu papel mais emblemático no cinema foi o androide replicante de Blade Runner. Rutger Hauer improvisou seu monólogo final no filme, numa cena em que cai um verdadeiro toró, e ninguém pode negar que, naquele momento, o ator teve uma poética epifania existencial: “Eu vi coisas que as pessoas não acreditariam. […] Todos esses momentos vão se perder no tempo. Como lágrimas na chuva”.

Todas essas histórias são verdade. Ou mais ou menos verdade. Digamos que são verdades polidas pelo tempo.

Uma epifania é definida como uma manifestação intuitiva da realidade, geralmente através de uma situação inesperada. Ou uma percepção do significado essencial de alguma coisa. Ou ainda, se você preferir, uma epifania acontece no momento em que o mundo te pega de jeito e finalmente a tua ficha cai.

A minha ficha caiu quando o homenzinho de camisa branca, gravata-borboleta, avental e cabelo escrupulosamente penteado para trás apoiou um espeto na minha frente e perguntou, distraído:

– Vai uma maminha na mostarda aí, amigão?

Eu gosto de maminha na mostarda, mas naquele momento minha mandíbula estava ocupada amassando, rasgando, cortando e triturando corações de galinha e uma alcatra ao alho que passara por ali trinta segundos antes. De repente, fui iluminado pelo brilho cegante da Revelação, como Saulo de Tarso na estrada para Damasco.

Afinal, quem precisava de tudo aquilo? Que selvageria era aquela de maminhas, alcatras, corações, asinhas, cupins, linguiças? Por que estávamos todos nos comportando como se fôssemos os comensais de um orgiástico banquete romano? Ou um bando de vikings?

Não é que eu não tivesse pensado nisso antes. Eu até resvalava por esse pensamento, de vez em quando. Mas naquele almoço a coisa me pegou com a força de uma manada.

E não é que eu seja um entusiasta do vegetarianismo. Não sou. Como carne diariamente, pelo menos em uma refeição, frequentemente em duas, e conheço a importância que essa dieta teve para nós como espécie.

Foi quando nossos ancestrais incorporaram coisas que se mexem ao cardápio que demos um salto evolutivo. Mesmo antes do fogo, precisávamos mastigar muito menos a carne crua do que se ficássemos comendo só raízes. Os dentes e as mandíbulas diminuíram, abrindo espaço na caixa craniana. Impulsionado pela nova dieta calórica, o cérebro se expandiu para ocupar esse espaço. E como agora não precisávamos mais passar o dia inteiro catando comida, ele tinha tempo para inventar coisas.

A história do smartphone em que você provavelmente está lendo este texto começa com um bife, há centenas de milhares de anos. Sem aqueles primeiros bifes não haveria alfabeto ou cidades ou aviões ou blue jeans ou antisséptico bucal.

Tudo isso é uma verdade científica elementar. Agora, uma churrascaria? Uma churrascaria é um templo erguido ao modo de vida que está nos matando. Uma obscenidade.

Segundo um relatório do ano passado do Instituto de Recursos Mundiais, metade da população do mundo ingere mais proteína do que precisa, enquanto cerca de 820 milhões de pessoas passam fome. No Brasil, o maior consumidor de carne do mundo, cada pessoa come em média 140 calorias de carne por dia.

Em 2050, seremos 10 bilhões de pessoas no mundo, 43% a mais do que hoje. Para alimentar todo mundo, precisaremos produzir 50% mais comida. E isso sem queimar ainda mais florestas para criar gado, aumentar a emissão de gases do efeito estufa e acelerar o colapso climático. Não há espaço no futuro para uma churrascaria.

Na mesa, com a boca cheia de alcatra e corações de galinha, bebendo Coca-Cola com gelo e limão e rindo das anedotas de um amigo, dei A Grande Guinada. Pedi para o homenzinho de gravata-borboleta se aproximar.– Ô chefia – chamei. – E aquele abacaxi assado com canela, dá pra sair?

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