Acidentes sob encomenda

Ouço o estrondo da batida e o barulho de vidro se estilhaçando e me viro a tempo de ver a pequena picape descrever sua última pirueta no ar e aterrissar de lado sobre a calçada, destruída. Perturbado pela carga dramática da cena, adquiro de imediato a certeza de que alguém morreu. “Não é possível”, comento rapidamente com um amigo.

Livro-me da caneca de chope sobre uma mureta e desço os poucos metros que me separam da frente do Ornitorrinco, bar do qual já fui habitué e onde agora apareço de vez em quando, do cruzamento das ruas Benjamin Constant e Doutor Faivre, onde vira e mexe algum motorista com o pé nervoso no acelerador se estrepa. A meio caminho, lembro de ligar pra emergência.

Não sei de onde saiu tanta gente, e imagino que talvez tenham caído do céu ou brotado do chão, mas no tempo que levei pra percorrer meia quadra o utilitário capotado ficou cercado, tanto de gente que queria honestamente ajudar quanto de cretinos que intencionavam apenas bancar o Jake Gyllenhaal em O Abutre, só que com o celular.

O sedan que também se envolveu na batida – melhor: foi envolvido – estava no meio da esquina, com a frente completamente escangalhada, mas a motorista saiu dele andando. Dentro do carro, uma cadeirinha de bebê, felizmente desocupada. Alguns passos adiante, o outro motorista estava preso nas ferragens, com o lado esquerdo do rosto ensanguentado e uma porção dos cabelos emplastrada também do sangue que se acumulou numa pequena poça no asfalto.

A força da batida deformou completamente o metal da carroceria, que avariada deixava uma grande fresta que me permitia enxergar melhor dentro da picape.

– Tá muito machucado, camarada? – perguntei.

O motorista me faz um sinal de positivo, o que me deixou na mesma. Aquilo significava que ele estava ou não muito machucado? Reformulei:

– Muita dor?

Novo sinal de positivo.

– Consegue falar?

– Consigo – respondeu ele finalmente.

– Ótimo, então. Aguenta aí. O socorro já chega.

Dei a volta pra ver o outro lado do veículo e checar se alguma coisa, como combustível, estava vazando (talvez eu esteja assistindo a filmes demais). Três sujeitos começaram a empurrar a caminhonete, para desvirá-la. Argumentei que aquilo era uma imprudência, e que a única coisa sensata a fazer no momento era esperar os socorristas, deixar tudo na mão dos profissionais. Um deles largou o carro, mas dois seguiram com o plano temerário. Subi o tom e acabei sendo grosseiro, o que muito raramente sou:

– Porra, velho, tira a mão dessa merda.

O camarada me olhou feio, mas ganhei o apoio de uma senhorinha que estava por ali e a coisa se resolveu nisso. No meio da bagunça, um documento ensanguentado do motorista veio parar na minha mão. Sem a mínima ideia do que fazer com aquilo, enfiei o papel no bolso de trás do jeans.

A PM, os Bombeiros e o Siate não demoraram. No lusco-fusco, brilhava a selvageria urbana das luzes dos giroflexes. Passei o documento ensanguentado adiante e saí do caminho. Voltei para o bar, para a conversa com meu amigo Almir – apesar de advogado, um grande papo e um coração do tamanho de um motor a diesel, abastecido por uísque e gentileza – e pra minha meia caneca de chope, agora um pouco quente. Antes que tivessem me perguntado qualquer coisa, informei:

– Acho que o motorista tinha bebido.

Eu havia visto no asfalto duas latas de cerveja que rolaram de dentro do carro desfigurado.

Em Minas Gerais, uma barragem negligenciada se rompe e soterra quase 200 pessoas sob lama envenenada. No Rio de Janeiro, um alojamento que nem deveria existir vira o forno de incineração que carboniza dez crianças vivas. Em São Paulo, um helicóptero que não deveria transportar passageiros mata um passageiro – e o piloto – num pouso forçado. Em Curitiba, um homem com algumas cervejas na cabeça e muita pressa fura um semáforo e quase aniquila a si mesmo num cruzamento complicado.

Não existe isso de “acidente”.

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