A Terra é plana, e eu posso provar

Mais dia, menos dia, nós desapareceremos. Eu e você vestiremos o paletó de madeira, pediremos o boné, iremos para o beleléu, chamaremos o garçom, comeremos capim pela raiz.

Para a minha lápide, vou querer uma frase de William Faulkner, escrita em um dos contos policiais de Lance Mortal, aquela que diz que a vida de todo homem pode ser resumida em sete palavras: “Ele nasceu, ele sofreu, e ele morreu”.

É uma ideia tão triste como certa, o desaparecimento.

Meu primeiro contato com a finitude foi com a morte de meu avô, há muitos anos. Ele teve câncer, agonizou devagar. Passei algumas tardes lhe fazendo companhia no hospital, o diagnóstico ainda incerto. Uma dor tão aguda que mesmo a morfina era como soda limonada.

De repente, ele melhorou. Nesse meio-tempo, gostava de dizer, cuia de chimarrão na mão, que tinha derrotado a “doença maldita”. Um ano depois, o câncer voltou, rápido, certeiro, vingativo. Não pude nem me despedir.

Minha segunda experiência foi com um amigo, e eu não deveria estar perdendo amigos naquela idade. Eu já estava em Curitiba, fazendo faculdade. Recebi a notícia por telefone, logo pela manhã, quando me preparava pra sair pro trabalho:

– Fulano de Tal morreu.

– Ah, velho, você está de sacanagem, não é possível.

Ninguém estava de sacanagem. Quem me deu a notícia inclusive tinha tido a cortesia de esperar amanhecer, antes de fazer a ligação. Meu amigo morreu de estupidez: muitas cervejas na cabeça, muita velocidade no carro, uma reta que de repente resolveu fazer uma curva.

Minha cidade natal estava a quase 600 quilômetros de distância. Não conseguiria nem ao menos chegar para o enterro. Mais uma vez, longe demais para me despedir.

Depois foi minha bisavó, mais amigos, mais parentes. O último, meu tio, o camarada que me levava para tomar sorvete quando eu era menino. Nem tinha ainda completado 50 anos. Uma hemorragia furiosa, causada pelos anos de alcoolismo. Fui avisado durante a noite de que ele estava mal. Minha mãe nunca faz questão de dourar a pílula. É franca, direta, às vezes terrível:

– Não vai durar, o teu tio. Não adianta se enganar. Se conseguir, vá. Ele vai gostar de te ver.

Organizei tudo o mais rápido possível, mas ele morreu na manhã seguinte. O máximo que pude foi tocar uma última vez o corpo frio. Não que isso tenha servido de alguma coisa.

Tudo isso foi de uma tristeza imensa. Mas uma tristeza compreensível. As pessoas morrem. Faz parte do jogo. Não é irracional.

Agora, mais dia, menos dia, eu e você desapareceremos. Não apenas como indivíduos. Desapareceremos como espécie. A humanidade, esse tipo imbecil que eu e você representamos, caminha a passos largos para a própria extinção. E, ao que parece, nem eu nem você podemos fazer nada a respeito.

Não será rápido. Vai ser lento, doloroso, como um câncer. Demorará séculos, talvez um ou dois milênios, mas chegará. A conta é a seguinte: somos 7,5 bilhões habitantes na Terra, e subindo. O planeta não aguenta tanta gente. A população, no entanto, precisa continuar crescendo pra manter o nível de consumo que sustenta o sistema econômico que construímos. E, quanto mais gente, mais próximos ficamos do colapso climático.

Eu estava cozinhando uma sopa na semana passada e, enquanto picava a salsinha e sentia o perfume da erva subir da tábua de corte, pensei: por quanto tempo mais teremos salsinha no mundo? Um século? Dois? Cinco? E daí imediatamente pensei de novo: quando a última geração estiver sobre o globo, saberá que algum dia existiu salsinha, esse maravilhoso ingrediente para dar o toque final em uma sopa? O que a geração final pensará de nós que, por egoísmo, ganância e simples burrice exterminamos a salsinha e a condenamos a viver em um inferno de esterilidade? Quanto ódio sentirá? O último homem da Terra saberá que é último homem, o fim de tudo?

Não há como reverter nossa jornada rumo ao fim. Para isso, seria preciso um esforço coordenado e mundial. Não irá acontecer. Somos governados atualmente, e por toda parte, por gente que nega uma verdade elementar: o aquecimento global. Pior: somos governados por quem nega uma verdade elementar estabelecida por Aristóteles: o formato da Terra.

Não sei se vocês sabem, mas a Terra é plana. Até segunda ordem, a história continua sendo contada pelos vencedores. Eles, no caso.

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